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"Fresh start" na falência. De fato, novo começo?

21/01/2022 às 22:55
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O fresh start talvez não beneficie a pessoa jurídica falida, cujo nome fica na vitrine e na memória dos credores.

Foi-se o tempo em que no Brasil havia produção de leis[1] duradouras e consentâneas com a realidade e exigências [fins] sociais. A lei simbólica[2], alterada consoante os movimentos da sociedade ou [principalmente] ao sabor dos ventos, faz com que se redobre o trabalho hermenêutico-interpretativo por parte do exegeta. Impõe-se ao intérprete autêntico, estrita observância do art. 20 da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, a fim de conferir exato sentido e alcance ao enunciado legal.

Em termos de legislação acerca da insolvência - Lei 11.101/05 e sua recente alteração -, não há como discordar do pensamento esposado por Frederico A.M. Simionato, segundo o qual:

A nova lei não é necessariamente liberal; trata-se de uma legislação simplista e redigida de maneira atabalhoada, bem ao gosto dos tempos atuais[3]

Não se pode concordar completamente com a assertiva de François Rigaux, no sentido de que nas nossas sociedades, em que os que sabem fazem a lei para os que sabem menos...[4], porquanto denota-se que a atual lei, além de deficiências quanto ao seu teor, prejudica os microempresários e as empresas de pequeno porte, especialmente em tempos sombrios, de crise sanitária mundial. A abertura judicial de falências vem ocorrendo, não descuidando do fechamento das portas, sem indispensável baixa nos registros empresariais. Durante a pandemia, foram várias as falências decretadas, e isso significa desemprego, não recolhimento de tributos, ausência de disputa por mercado e assim por diante.

Mais do que isso, a lei de 2005 foi baseada na tradição jurídica de outros países (notadamente Estados Unidos e França, sendo que na lei deste país há outros mecanismos formidáveis de prevenção/alerta da crise, não albergados pelo texto nacional de 2005, o que se lastima), sem se verificar as vicissitudes da entidade nacional e quais os melhores caminhos que deveriam ser trilhados para, de fato, tentar o reerguimento e retorno ao mercado competitivo[5].

A adoção do instituto assim denominado de fresh start, que significa um novo começo[6], no art. 158 da Lei 11.101/05[7], que trata da extinção das obrigações da entidade falida, não pode ser festejada, simplesmente. Ora, diz a lei que há de se fomentar o empreendedorismo [art. 75, inc. III) e viabilizar o retorno célere do empreendedor falido à atividade econômica.

Em primeiro lugar, a ideia de empreender decorrer da livre iniciativa, de cunho constitucional [CF, art. 170, caput], mas esse ideário de empreender, a rigor, não se destina a falido, que já foi retirado do mercado. Quanto ao retorno célere do empreendedor falido à atividade econômica, inexiste qualquer impedimento, por exemplo, que sócio/acionista de entidade falida se torne sócio/acionista de outra entidade empresária, não podendo ter poderes de direção[8]. Trocando em miúdos, a diminuição do lapso temporal para extinção das obrigações, a contar da sentença de abertura da falência, independentemente de trânsito em julgado (a lei não diz ao contrário - art. 158, inc. V) é um formidável incentivo ao novo empreender; é um perdão, por assim dizer, pelos débitos[9].

Estimula-se que se retorne rapidamente ao mercado competitivo, esquecendo-se do passado, quiçá dos erros e equívocos que levaram à falência. É uma boa forma de (tentativa de) reabilitação, mas isso independe da qualificação de quem pretende uma nova chance e muito menos se perquire a respeito da boa ou má-fé. O perdão se traduz em garantida de que o novo empreendimento dará certo e que inexistam novas falências.

Em resumo, o fresh start talvez não beneficie a pessoa jurídica falida, cujo nome fica na vitrine e na memória, por exemplo, dos detentores de crédito não pago, mas pode ser formidável a um sócio de responsabilidade ilimitada, figura jurídica essa tendente ao desaparecimento [quem o seria em tempos atuais]. Na memória de muitos permanece o estigma de falido. Nem sempre o importado é melhor!


Notas

  1. A lei, na visão de Aristóteles, permite sejam feitas melhorias, onde quer que seja, depois que as experiências mostram que as novas propostas são melhores do que as regulações existentes. Portanto, aquele que pede que a lei governe está pedindo a Deus à Inteligência, e não a outros, que o façam; quem solicita o governo de um ser humano está produzindo uma besta selvagem; pois as paixões humanas são como bestas selvagens, e sentimentos poderosos levam à perdição os governantes e os melhores homens. Na lei tem-se o intelecto sem paixões. Aristóteles. Vida e obra. São Paulo: Nova Cultural, 2004, p. 247. E prossegue o mesmo pensador afirmando que quanto às pessoas que ocupam cargos públicos, costumam, todas elas, manejar as coisas com base em seus gostos e desgostos. Op. cit., p. 247. Jürgen Habermas bem explica: enquanto a forma política das relações de produção em sociedades tradicionais permitiam fácil identificação nos núcleos dominantes, no capitalismo liberal a dominação manifesta foi substituída pelo poder politicamente anônimo dos súditos civis. (Sem dúvida, durante crises sociais economicamente induzidas, estes poderes anônimos de novo assumem a forma identificável de um adversário político, como pode ser visto nas frentes dos movimentos europeus trabalhistas). Mas, enquanto no capitalismo organizado as relações de produção são sem dúvida repolitizadas numa certa extensão, a forma política do relacionamento de classe não é contudo restaurada. No seu lugar, o caráter político anônimo da dominação de classes é superado pelo caráter anônimo social. Isto é, as estruturas do capitalismo avançado podem ser compreendidas como formações de reação a crises endêmicas. A crise de legitimação no capitalismo tardio. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 2002, p. 52.
  2. NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
  3. Tratado de direito falimentar. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 3. Grifos no original.
  4. A Lei dos Juízes. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. XI. Há evidente diferença entre conhecimento e sabedoria. Esta contempla muito mais que repertório de informações, qual se vê por aí. Não diga que você leu muitos livros. Mostre que, por meio deles, você aprendeu a pensar melhor, a ser uma pessoa mais perspicaz e ponderada. Os livros são para a mente o que os pesos da ginástica são para o corpo. Os livros são muito úteis, mas seria um grave erro supor que alguém progrediu apenas por conhecer o seu conteúdo [Epicteto].
  5. Não se descuide que a Lei 11.101/05 busca conferir segurança jurídica aos detentores do capital, com a preservação das garantias e normas precisas sobre a ordem de classificação de crédito na falência, a fim de que se incentive a aplicação de recursos financeiros a custo menor nas atividades produtivas, com o objetivo de estimular o crescimento econômico. Parecer n. 534 de 2004, sobre o PLC 71/03. Ver: CLARO, Carlos R. Revocatória Falimentar. 4a edição. Curitiba: Juruá, 2008; https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=580933. Acesso: 06/05/2021. Cabe relembrar o pensamento de Michel Villey: Como justificar o poder das leis positivas? Impossível recorrermos aos mitos do direito divino dos príncipes, do contrato social, aos fantasmas ideológicos da soberania popular da vontade geral, da representação do povo pelos deputados já que hoje pretende-se que as leis provenham de nossos deputados... Filosofia do Direito. Definições e Fins do Direito. Os Meios do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 433. Grifos constantes do original.
  6. O Brasil aprecia a importação de institutos, notadamente os norte-americanos previstos no Bankruptcy Code.
  7. Relação direta com o art. 75, inc. III do mesmo diploma legal. Ora, se antes da reforma o decurso do prazo se iniciava a contar do encerramento da falência, a nova redação é no sentido de que é contado da abertura judicial, independentemente de trânsito em julgado. A redução drástica de dez e de cinco anos para apenas três anos, a contar da sentença de falência é excelente para o falido, para a entidade falida e seus sócios/acionistas. Em resumo, pela lei, o novo empreendedor pode voltar ao mercado competitivo rapidamente, bastando aguardar três anos, observados os requisitos legais. De fato, talvez mereçam nova chance, sem descuidar que desoneram-se os débitos constantes da falência [interpretação do art. 158, inc. II, que pressupõe o pagamento dos créditos extraconcursais e os precedentes aos quirografários]; é como se fosse concedido um perdão ao devedor que faliu, salvo algumas exceções legais.
  8. Não se ingressa aqui em questões tais como na diferença entre entidade falida e seus sócios; quem é sócio solidário e quem não o é.
  9. O texto legal que prevê a venda judicial dos ativos em até 180 dias, a contar da juntada do auto de arrecadação no processo [art. 22, inc. III, letra j], sob pena de destituição é algo surreal e entra em choque, por exemplo, com o art. 114 e art. 119, inc. VII.
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Sobre o autor
Carlos Roberto Claro

Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; Parecerista; Pesquisador; Autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CLARO, Carlos Roberto. "Fresh start" na falência. De fato, novo começo?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6778, 21 jan. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96044. Acesso em: 8 out. 2024.

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