O Direito Internacional Humanitário e as operações de paz da ONU.

Considerações práticas e jurídicas na aplicação

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27/12/2021 às 14:37
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Este artigo aborda algumas das questões e desafios envolvidos na aplicação do Direito Internacional Humanitário - Direito dos Conflitos Armados, em Operações de Paz da Organização das Nações Unidas.

Resumo: Este artigo aborda algumas das questões e desafios envolvidos na aplicação do Direito Internacional Humanitário - Direito dos Conflitos Armados,em Operações de Paz da Organização das Nações Unidas. O estudo analisa como as transformações ocorridas após o final da Guerra Fria afetaram a operacionalização dos princípios das operações de paz, a saber, consenso das partes, imparcialidade e uso da força, em contextos cada vez mais complexos, marcados por crises internas aos Estados, em que as forças multinacionais possuem Mandatos cada vez mais robustos, podendo se tornar partes nos conflitos armados.

Palavras-chave: : : ONU - Operações de Paz - Uso da Força - Direito Internacional Humanitário.


Introdução

As Operações de Paz das Nações Unidas emergiram pouco depois do final da II Guerra Mundial, mais precisamente em 1948, como forma de instrumentalização de uma das principais atribuições da ONU previstas em sua Carta: manter a paz e a segurança internacionais.

É importante deixar claro que não há, expressamente prevista na Carta de 1945, qualquer referência ao desdobramento de forças militares, identificadas com equipamentos principalmente capacetes ou boinas azuis e bandeiras da organização, em territórios que estivessem em conflito, ou recentemente concluído acordos de paz.

Aliás, detalhes sobre como a então nascente organização iria desempenhar suas relevantes funções, e atingir as altas expectativas nela depositadas não estão expressos no referido documento. Apesar de a ideia inicial, ainda durante as negociações para a criação da ONU, com apoio dos EUA, ser a de uma força militar permanente à disposição da Organização, isso não se concretizou por resistência da então URSS. O que ficou registrado nos artigos 42 e 43 da Carta, acabou por indicar o caminho a ser adotado para a mobilização de forças militares a serem empregadas sob a bandeira azul.

Talvez por isso a literatura que investiga a história e o desenvolvimento das Operações de Paz onusianas faz referência a um período inicial um tanto confuso, em seus aspectos administrativos e burocráticos, com a utilização de soluções Ad Hoc (BENNER et al. 2011), inspiradas na experiência e criatividade de alguns dos primeiros membros do aparato administrativo internacional recém formado, em sua maioria profissionais de carreira militar ou diplomática, que serviam no Departamento de Assuntos Políticos Especiais, substituído em 1991 pelo Departamento de Operações de Manutenção da Paz (DPKO, em inglês), sendo este renomeado para Departamento de Operações de Paz (DPO), em janeiro de 2019.

Apesar da necessidade de improvisações ser uma constante no início de sua aplicação, as Operações de Paz da ONU logo desenvolveram, no contexto de um mundo bi polarizado e relativamente estável da Guerra Fria, princípios sólidos de atuação, que asseguravam a segurança e a legitimidade das forças no terreno, e se adequavam ao que era exigido dos primeiros peacekeepers. Um dos aspectos principais desenvolvimentos a que nos referimos aqui é chamado de Santa Trindade das Operações de Paz, por alguns analistas (BELLAMY et al. 2010; KENKEL, 2013, p.126).


As Operações de Paz na Guerra Fria

Consenso, imparcialidade uso mínimo da força, são os princípios que sustentaram as Operações de Paz da ONU durante todo o período da Guerra Fria. Juntos, formaram a chamada Santa Trindade do Peacekeeping. A Trindade representa uma resposta adequada a um conceito tipicamente Westfaliano de ordem e direito internacionais, em que a soberania dos Estados é valor virtualmente inquestionável. Além disso, é também a maneira como a organização se conformou à tensão entre as duas superpotências, característica própria daquele período, e às formas como essa tensão se manifestou nos territórios e países em conflito.

O Consenso se traduz na necessidade de aceitação da presença das forças de paz pelas partes de um determinado conflito, para a aprovação do Mandato pelo conselho de Segurança e envio das tropas. Na maior parte das operações no período, esse mandato se traduziu em observar e relatar sobre o cumprimento, ou não, dos termos de acordos de paz já assinados e em fase de implementação. Na prática, isso exigia dos peacekeepers patrulhas regulares em zonas desmilitarizadas, observação de arsenais entre outras atividades, de natureza neutra, imparcial e nada invasiva no contexto do conflito. Para esse tipo de missão, as forças eram equipadas com armamento necessário somente para autoproteção, e alguns peacekeepers, como os Observadores Militares, eram e são, até hoje, enviados sem qualquer material bélico.

Por imparcialidade se entende a atuação pautada na isonomia e na neutralidade, sem prestação de qualquer suporte a um dos lados do conflito em detrimento do outro, que pudesse fazer pender o pêndulo da disputa.

O uso mínimo da força se concretiza na autodefesa. Dos integrantes de Operações de Paz onusianas, no período da Guerra Fria, esperava-se somente que utilizassem suas armas para que não fossem mortos. Qualquer outro uso que pudesse, de alguma forma, ser percebido como interferência no (des)equilíbrio entre as partes não era autorizado.

A Santa Trindade, e a forma como foi interpretada, se mostrou bastante adequada para o contexto político da época. A soberania dos Estados, como princípio organizador do sistema internacional, garantida na própria Carta de 1945, não permite aos Estados ou à ONU, a interferência nos assuntos internos das unidades do sistema.

Por outro lado, as Superpotências da época, ao definirem suas esferas de influência internacional, não aceitavam que a atuação da Organização desempenhasse qualquer papel no avanço ou recuo das peças no tabuleiro do mundo bipolar. Esta, aliás, foi uma lição aprendida pela então URSS, que se recusou a participar das discussões no Conselho de Segurança da ONU durante a crise da Coréia, o que facilitou ao bloco ocidental a aprovação da Operação, e um emprego efetivo de capacetes azuis em combate. Após isso, a URSS se dedicou a não mais permitir que os EUA, e seus aliados, utilizassem o aparato internacional para o que o bloco oriental entendeu tratar-se de uso parcial.

O respeito à soberania e a condição gerada pela disputa entre as Superpotências se aliam a uma terceira característica, que se refere à natureza dos conflitos da época. A maior parte dos conflitos em que operações de manutenção da paz foram autorizadas se tratava de conflitos internacionais, entre dois ou mais Estados (mais precisamente, das 15 Operações de Paz autorizadas entre 1945 e 1987, 11 se deram em conflitos internacionais). Nas poucas situações em que se viu diante de conflitos internos (como no Congo, na década de 1960), a ONU enfrentou condições que puseram em cheque a Santa Trindade, ou pelo menos a maneira como era interpretada e operacionalizada, além de sofrer as consequências de uma forma de planejar, equipar e conduzir as operações, adequada aos preceitos da tríade Consenso Imparcialidade Uso Mínimo da Força, antecipando desafios que seriam a marca do período pós Guerra Fria.

Dos três componentes da trindade, foram os feixes do Uso Mínimo da Força e da Imparcialidade que mais sofreram transformações em sua interpretação e aplicação. Na próxima seção, veremos como exigências relativas à proteção dos direitos humanos das populações envolvidas em conflitos, em sua maioria, internos, a incapacidade (material, normativa e política) das forças de paz em corresponder a tais exigências e as transformações decorridas do fim da Guerra Fria afetaram operações de paz.


Período Pós-Guerra Fria (1989 - 2000)

A queda do muro de Berlim e o fim da bipolaridade no sistema internacional trouxeram transformações e desafios significativos às operações de paz da ONU, impactando na maneira como a "Santa Trindade", principalmente o Uso Mínimo da Força seria interpretada. Tais transformações se deram de natureza quantitativa, qualitativa e normativa (BELLAMY et al. 2010).

Quantitativamente, observa-se aumento significativo na demanda por operações de paz para gerir os conflitos remanescentes e os novos distúrbios emergentes. A título de exemplo, nos quarenta e três anos entre 1945 e 1988, foram autorizadas 15 operações de manutenção da paz. Por outro lado, somente no curto período entre 1989 e 1993, o Conselho de Segurança autorizou e executou 20 novas operações.

Em termos qualitativos, nota-se o aumento do escopo e atividades desempenhadas pelos peacekeepers. Os mandatos, até então fortemente concentrados em observação de movimentos e retirada de tropas, manutenção de zonas desmilitarizadas (buffer zones), monitoramento de acordos de paz ou armistício e interposição entre partes beligerantes, passaram a conter atividades como monitoramento e condução de eleições, acompanhamento de transições de regimes políticos, observação e relato de violações de direitos humanos, treinamento de instituições de segurança, ações humanitárias, desarmamento, desmobilização e reintegração de combatentes, proteção de populações, desenvolvimento, Administrações interinas, entre outras.

A mudança normativa pode ser observada nos documentos produzidos, não somente pela ONU, a partir de 1989, como também por vários dos países membros, analisando as transformações contextuais, prescrevendo responsabilidades, criando doutrinas de atuação e gerando altas expectativas. Na estrutura onusiana, talvez um dos documentos que melhor reflita o espírito de tais mudanças seja o relatório de 1992, intitulado Uma Agenda para a Paz, produzido pelo então Secretário Geral Boutros Boutros-Ghali.

Nesse documento, são expostas as expectativas com relação ao papel da organização e o emprego das forças de paz, na transformação de sociedades em conflito, criações de condições para uma paz duradoura e sustentável, além de elencar as atividades a serem desempenhadas para a construção da paz e a necessidade de que a comunidade internacional dotasse a organização dos recursos adequados para que tais objetivos fossem alcançados.

Há dois desenvolvimentos cruciais a serem observados para explicar as transformações nas operações de paz naquele período. O primeiro é a relativa instabilidade deixada em algumas regiões do mundo pelo vácuo produzido com o fim do equilíbrio entre as duas superpotências. Antigas rivalidades, antes contidas, renasceram, dando espaço para conflitos internos com características diversas daquelas dos conflitos internacionais, como financiamento de (e por) atividades criminais, deslocamento e vitimização de populações civis, genocídios, guerras urbanas, terrorismo. Há quem defenda o surgimento de um fenômeno conhecido como Novas Guerras (KALDOR, 2006).

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O segundo é o clima de otimismo e de cooperação internacionais observados na época. Havia a expectativa de que o fim das disputas entre os blocos capitalista e socialista permitiria que, finalmente, a ONU desempenhasse o papel desejado por seus idealizadores, liberada dos entraves no Conselho de Segurança. Além disso, a crença de que o caminho para o desenvolvimento da humanidade estava encapsulado nos valores liberais, na democracia, no desenvolvimento social e promoção dos direitos humanos. As operações de paz da ONU seriam a ferramenta da comunidade internacional para viabilizar esse desenvolvimento nas regiões mais violentas do globo. Prova disso são a edição de Mandatos cada vez mais ambiciosos pelo Conselho de Segurança.

Em resposta, a ONU reestruturou, o setor de operações de paz, criando, em 1991, o DPKO (Departamento de Operações de Manutenção da Paz).

Esses dois fatores, nomeadamente as crises, principalmente guerras internas, e o clima de otimismo e cooperação, aliados a sucessos de algumas das operações como a UNTAG (Namíbia), em 1989, e ONUCA (América Central), em 1991, entre outras, contribuíram para o aumento do número de missões e da expectativa do que elas poderiam realizar, sem que, entretanto, tal incremento fosse acompanhado de aumento de recursos e adequações na doutrina e equipamentos. Para que se tenha uma imagem mais clara, as operações mencionadas acima, como também a UNAVEM (Angola), assumiram novas responsabilidades além das previstas inicialmente nos mandatos, em decorrência de transformações e demandas surgidas nos locais em que atuavam, sem que, necessariamente, houvesse compensação em suas capacidades (por exemplo, número e tipo de tropas, orçamento, especialistas civis...).

A receita para os fracassos, ocorridos não muito tempo depois, estava completa. De fato, a euforia e a confiança da comunidade internacional nas operações de paz onusianas como seu principal instrumento para controle e resolução de conflitos viveriam somente até meados da década de 1990. Dois principais fracassos contribuíram para isso: o genocídio em Ruanda, em 1994 e o massacre em Srebrenica (ex Iugoslávia), em 1995. Nestes dois eventos, o mundo assistiu assombrado ao extermínio sistemático de milhares de civis, entre eles mulheres, idosos e crianças, em guerras intestinas, num período de não mais de 4 meses (Ruanda), e 2 semanas (Srebrenica), diante da presença de forças de paz inertes, incapazes de impedir o desastre. No caso de Srebrenica, a população massacrada, cerca de 8 mil pessoas, estava concentrada em uma área de segurança criada pela própria ONU, guardada por efetivos Sérvios e com forças de paz nas imediações.

Quer sejam a insuficiência de tropas e equipamentos, as limitações impostas pelos mandatos, a aderência aos princípios de imparcialidade e uso mínimo da força ou a incapacidade de mobilização da vontade política de atores internacionais ou a combinação de todos estes fatores - o fato é que a responsabilidade pelo fracasso frente aos massacres pesou, em sua maior parte, na estrutura de missões de Paz, já naquele período representado pelo DPKO (Department of Peacekeeping Operations), e seus integrantes militares e civis, tanto em Ruanda como na ex Iugoslávia. A reação ao fracasso pode ter sido ainda agravada pela expectativa depositada nos capacetes azuis, principalmente pelas populações afetadas pela violência. Como já foi exposto, a proteção de pessoas nos conflitos e a defesa dos direitos humanos são tarefas que passaram a integrar o rol de responsabilidades dos peacekeepers, de maneira constante, após as transformações do final da Guerra Fria. Antes disso, não se esperava das forças de paz, exceto em algumas poucas ocasiões, um papel de tal natureza.

Entretanto, é preciso observar que além de não estarem operacionalmente preparadas para enfrentar forças inimigas (equipamentos e contingentes reduzidos), as forças da ONU não estavam doutrinária e legalmente, autorizadas a utilizar a força de maneira a evitar as tragédias, sob o risco de se tornarem parte do conflito, perdendo a imparcialidade, arriscando-se a comprometer o consenso das partes e rompendo com os princípios de atuação, percebidos como garantidores tanto da segurança quanto da legitimidade da organização.

Diante deste cenário, observou-se, a partir da segunda metade da década de 90, o movimento contrário, ou seja, de perda de confiança e retração das operações de paz.

Para que se tenha uma dimensão, se entre 1989 e 1993 o Conselho de Segurança autorizou 20 novas operações, no período de crise, entre 1995 e 1999 somente 3 novas missões foram criadas, a saber, UNSMIH - Haiti, UNOMSIL - Serra Leoa e MINUGUA Guatemala (BELLAMY et al. 2010).

Entretanto, o início do século XXI veria o movimento oposto, e um crescente aumento da confiança da comunidade internacional nas operações de paz da ONU e de outras organizações para gerir conflitos violentos.


As Operações de Paz no Século XXI

As catástrofes nas operações de paz do final do século XX, percebidas entre outros fatores, como potencializadas (ou no mínimo, facilitadas) pelas debilidades do sistema de operações da paz da ONU, provocaram um período de intensa reflexão no seio da organização. Apesar da resistência inicial em reconhecer seu papel nos eventos, liderada pelo então Secretário Geral, Kofi Annan, a ONU realizou uma série de investigações sobre os erros cometidos. Esse processo culminou, entre outros documentos importantes, com o seminal Relatório Brahimi, lançado em setembro de 2000.

Reconhecendo as fraquezas da organização, o Relatório Brahimi ofereceu uma gama de recomendações cuja implementação visava superá-las. As áreas para melhoria podem ser agrupadas em quatro categorias, a saber, processo de tomada de decisões, alinhamento entre exigências do mandato e dos recursos oferecidos, rapidez na implantação das operações, efetividade das operações. Todas as medidas propostas representam, ainda hoje, desafios importantes a serem superados pela organização e pelos Estados, mas muito já se avançou desde o lançamento do Relatório.

Uma das áreas que mais afeta a presente discussão, por guardar relação direta com questões relativas ao Uso da Força e à Imparcialidade, é a efetividade das operações. O Relatório Brahimi permite concluir que a efetividade das forças no contexto dos conflitos, está diretamente relacionada a que tenham capacidade militar e autorização de uso de força não somente para autoproteção, mas para proteção do mandato e, de particular relevância, para a proteção de civis sob ameaça de violência.

As transformações no aspecto Uso da Força podem ser observadas sob vários ângulos. O primeiro é o desenvolvimento de doutrinas de atuação que estabelecem conceitos a padrões de operatividade. Por exemplo, a doutrina chamada de Proteção de Civis (POC, em inglês), segundo a qual as tropas sob a égide da ONU têm o dever de atuar em defesa de populações civis, sempre que presenciarem violência cometida por quaisquer das partes de um conflito. Tal atuação pressupõe, obviamente, o uso dos recursos militares disponíveis.

É desse período também a adoção, pela Assembleia Geral, na Reunião da Cúpula Global (Global Summit 2005), da norma internacional conhecida como Responsabilidade de Proteger (R2P, da sigla em inglês). Desenvolveremos o tema R2P em outra oportunidade, mas cabe aqui ressaltar que ao adotar a referida norma, os países membros da Assembleia Geral assumiram, sob a égide da ONU, a responsabilidade de intervir, ainda que militarmente, mesmo que sem consentimento das partes, em países cujas lideranças sejam incapazes de, ou relutantes a, protegerem suas populações contra genocídios, limpezas étnicas, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Desde 2006, O Conselho de Segurança mencionou a norma R2P em 30 Resoluções, com Mandatos mais robustos no tocante ao uso da força e meios necessários para implementar tais mandatos (ver: https://www.globalr2p.org/about_r2p).

O segundo desenvolvimento é a dotação, por parte dos países contribuidores de tropas, de efetivos com maior capacidade militar para a proteção de civis e dos seus mandatos, o que pode incluir, em alguns casos, a condução de operações para neutralizar ações de grupos contrários ao processo de paz (eg. as operações planejadas e executadas pelas forças da MONUSCO e do Governo da República Democrática do Congo contra posições das Forças Democráticas Aliadas, em novembro de 2018, com baixas em todos os lados do confronto ver: https://monusco.unmissions.org/en/fardc-and-monusco-launch-joint-operations-against-adf). Um exemplo são as Brigadas de Intervenção Rápida, na MONUSCO (República Democrática do Congo).

Após o lançamento do Relatório Brahimi observa-se um aumento constante de operações de paz (da ONU e de outras organizações). Isso se explica não somente pela percepção de que a Organização havia embarcado em um sério processo de revisão de seus procedimentos e de constante aprendizado, processo este, coroado com alguns importantes sucessos (Timor-Leste, Camboja, Namíbia) mas também, segundo alguns analistas, pela propensão dos países contribuidores de tropas a reforçarem as capacidades de operações com cunho humanitário, na esteira dos eventos de 11 de setembro de 2001 (BELLAMY e WHEELER, 2005, p. 572. apud BELLAMY et all. 2010). Esta posição, entretanto, é disputada por outros estudiosos, já que a Guerra Global ao Terror, liderada pelos EUA estremeceu as relações entre aquele país e a ONU (WEISS, 2004, p.165 apud BELLAMY et al. 2010).

Seja como for, uma conjunção de fatores levou ao aumento da credibilidade da organização para gerir conflitos, e da demanda por operações de paz cada vez mais robustas em seus mandatos e em suas capacidades para uso da força.

Consolidando as transformações observadas e as lições aprendidas até então, e atenta à crescente demanda por emprego de tropas sob a égide da organização, a ONU lançou, em 2008, os novos parâmetros de emprego das forças de paz, através do relatório Operações de Paz das Nações Unidas Princípios e Orientações, também conhecido como Doutrina Capstone. No documento, os princípios da Imparcialidade e do Uso da Força apresentam nuances em suas definições. Por exemplo, por imparcialidade a doutrina entende a aplicação do mandato sem favorecer ou atuar com viés com relação a quaisquer das partes do conflito. Entretanto, isso não pode ser confundido com neutralidade ou inatividade na execução do Mandato (ONU, 2008, p.33). Com relação ao princípio do Uso da Força, a Doutrina Capstone esclarece que, por atuar em ambientes com presença de milícias, grupos armados, e grupos criminais, a noção de Uso da Força em operações de paz se dá no nível tático, e deve presumir a utilização dos meios necessários para garantir a segurança das tropas, a execução do Mandato, a proteção de civis, inclusive com adoção de medidas proativas para inibir e/ou punir grupos que tentem perturbar o processo de paz e para auxiliar os Governos na manutenção da lei e da ordem (ONU, 2008, p.34).

Atualmente, a ONU executa 14 operações de paz, espalhadas por 4 continentes do globo. Dentre tais operações, 6 ocorrem em contextos de crises internas, onde houve ou há guerras ou graves distúrbios civis, e todas se iniciaram após 1990. Das outras 6 operações, desdobradas em conflitos internacionais, 5 representam engajamento contínuo com situações remanescentes do período da Guerra Fria. A maior parte das 14 operações possui em seus Mandatos a referência expressa à proteção de civis.

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Sobre o autor
Nelson Cesar Rosa Vieira

Mestre em Estudos Internacionais de Paz e Conflitos pela Universidade de Queensland, Austrália. Especialista em Direitos Humanos pela Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Capitão da Polí­cia Militar do Estado de São Paulo, Professor de Direitos Humanos e Direito Internacional Humanitário nas escolas de formação e especialização da Polícia Militar de São Paulo. Trabalhou como Policial das Nações Unidas no Timor-Leste e no Haiti. Trabalhou também em Haia, junto ao Instituto de Paz e Segurança Internacional e no Centro Ásia-Pacífico para a Responsa­bilidade de Proteger, na Austrália.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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