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Caso Allan dos Santos: narrativas x arbítrios.

Constitucionalidade e legalidade

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16/11/2021 às 18:15
Leia nesta página:

Não há sustentação plausível para as medidas draconianas adotadas em afronta à Constituição, às leis e até mesmo à isonomia.

“Pior do que um bandoleiro,

só um tribunal falso

Onde dorme a lei, o juiz é nosso inimigo

O pescoço do cidadão, sem abrigo,

Estende-se para o cadafalso”.

Gávrila Romanovich Derzhavín (1743 – 1816)


Em meio ao turbilhão de narrativas sem lastro probatório (ou pior, sem assento na realidade dos fatos) e arbítrios a que nos vamos, na falta de melhor palavra, acostumando ou sendo acostumados (a fórceps), eis que surge a notícia da decretação pelo STF da prisão preventiva do jornalista ALLAN LOPES DOS SANTOS. E não somente isso, do bloqueio de todos os seus recursos financeiros pessoais e empresariais, bem como do fechamento do veículo de imprensa de sua titularidade denominado TERÇA LIVRE e ainda da determinação de sua extradição dos Estados Unidos, onde se encontra, para o Brasil. [1]

Obviamente há imensa desproporção (sem considerar mais profundamente por ora o mérito) nessa decisão inusitada, sendo indispensável, nem mesmo que seja somente para registro histórico, dadas as peculiaridades do momento a não alimentarem maiores esperanças de justiça, analisar suas insustentáveis bases que mal se podem comparar aos famosos pés de barro de um gigante, [2] já que a única coisa realmente gigantesca é exatamente a ausência de qualquer espécie de sustentação plausível para as medidas draconianas adotadas em afronta à Constituição, às leis e até mesmo à isonomia com relação a outros profissionais, órgãos de imprensa e indivíduos. [3]

Sabe-se que todo o esforço para expor as ilegalidades e inconsistências, já para iniciar deveria ser desnecessário, deveria ser uma constatação de obviedades, mas, na verdade, se torna praticamente inútil, tendo em vista o que parece ser um poder incontrastável e ilimitado, cujo abuso patente se reitera nos braços da impunidade e, ao menos até agora, se apresenta indelével.

Mas, como a autoridade do sujeito (seja individual ou coletiva) não se pode derivar de uma mera crença nessa autoridade, de um autoritarismo qualquer ou de um automatismo subserviente, é preciso ter a iniciativa de encetar a crítica e buscar a verdade, a qual não se torna verdade porque advém de uma autoridade qualquer, mas sim confere autoridade a quem a abriga e respeita. Em suma, a autoridade tem origem e legitimação na verdade, jamais a verdade precisa da autoridade para se sustentar.

Na Petição 9.935/DF STF, [4] o Ministro Alexandre de Moraes inicia sua fundamentação, destacando trechos da representação da Prisão Preventiva pela Autoridade Policial.

Logo de início, a leitura desses trechos já demonstra a inconsistência não somente do pedido de medida cautelar privativa de liberdade e restritivas de direitos, mas do próprio feito principal em que são pleiteadas.

Acontece que a Autoridade Policial descreve condutas que sequer se amoldam a qualquer tipo penal que possa justificar nem mesmo a instauração de um inquérito, quanto mais medidas restritivas contra alguém. A mera leitura das manifestações da Autoridade Policial demonstra a total inexistência de Justa Causa para o constrangimento, seja de Allan dos Santos, seja de quaisquer outros envolvidos naquele feito.

Menciona-se a articulação de pessoas para a divulgação de notícias falsas ou parciais. Desde logo é preciso deixar claro que a parcialidade ou falsidade de notícias é algo cujo julgamento certamente não cabe a órgãos policiais e/ou judiciais, e menos ainda a eventuais organismos censores estatais ou privados. Há muitos órgãos de informação, alguns de grande alcance e imensos recursos, outros mais modestos ou até mesmo amadores, iniciativas puramente individuais. Em todos esses veículos podem surgir informações parciais ou até mesmo falsas. Não passa de puerilidade ou ingenuidade das mais crassas a crendice de que se algo é veiculado pelos jornais, revistas, rádio, televisão etc., é necessariamente verdadeiro. Ora, as mentiras divulgadas por toda a história estão a comprovar, induvidosamente, que dizer que se saiu na imprensa, então é verdade, se não saiu, é mentira, constitui a maior fake News de que se possa ter conhecimento! Ou ainda uma das maiores cretinices e imbecilidades de que um ser humano possa ser capaz. O filtro da credibilidade dos veículos somente pode ser um: o indivíduo que recebe a informação e deve aprender a filtrá-la autonomamente. E em nada se altera o quadro quando se parte para os agora tão difundidos órgãos de checagem de notícias, os quais sofrem dos mesmos vícios que os veículos noticiosos. A suposta checagem e orientação heterônoma das pessoas se constitui em uma espiral infinita de vigias que vigiam os vigias. E tudo isso, inevitavelmente acaba descambando para uma censura que se pretende velada, mas está escancarada aos olhos de todos que podem ver e só não enxergam os cegos voluntários.

Salvo situações aberrantes, na grande maioria dos casos a alegação de falsidade ou parcialidade tem se dado, seja por órgãos estatais (incluso o judiciário), seja por agências de suposta checagem, devido a uma temível e terrível incapacidade de distinção entre divulgação de informações e expressão de opiniões. Nada mais do que uma carência (motivada pela ignorância ou pela má fé) de capacidade de discernimento entre juízos de fato e juízos de valor.

Quando autoridades policiais, magistrados, membros do ministério público passam a pretender ditar o que é verdade em meio a esse emaranhado de opiniões e informações que giram na mídia, alguns efeitos altamente deletérios são inevitáveis, dentre eles: o império do subjetivismo muitas vezes guiado por posições ideológicas; a arbitrariedade; a censura prévia; a restrição indevida do direito de opinião, pensamento, informação, liberdade de imprensa e liberdade em geral; a criminalização de opiniões e discordâncias, geralmente também guiada por posicionamentos ideológicos e subjetivismos; o silenciamento do discurso pelo poder da força e da intimidação e o impedimento do debate salutar, mediante a imposição totalitária de um discurso único. Estamos diante de uma bastarda ou degenerada apropriação pelo Estado, por meio de seus agentes repressores e opressores, da liberdade de definição do que seja verdade, o que deveria ser um ato do indivíduo, no sentido político do agir a que se refere Arendt. [5] Somente faltaria criar e organizar uma Polícia do Pensamento e um Ministério da Verdade (Miniver em Novilíngua) nos moldes da distopia de Orwell. [6] Trata-se basicamente da produção em massa do homem massa, disforme, dócil, covarde e moldável, totalmente destituído da mais mínima autonomia e maturidade intelectual. [7] E note-se que a coisa não abranda quase nada quando se tratam de controles exercidos por Redes Sociais ou Agências Particulares de suposta checagem. Talvez o único fator de abrandamento nesses casos seja a incapacidade desses entes privados de criminalizar condutas. No mais, seus poderes podem ser ainda mais arbitrários do que aqueles exercidos pelo Estado. Observe-se que em bloqueios e banimentos realizados pelas próprias redes diretamente, não há sequer um simulacro de fundamentação, uma satisfação mínima que seja ao usuário. Por mais desprovida de sustentação, uma decisão judicial como a que se analisa neste texto pelo menos tenta apresentar uma aparência de legitimidade e de fundamentação para formalmente (e só formalmente) satisfazer o comando constitucional do artigo 93, IX, CF/88.

Note-se que ainda que se pretendesse fazer uma ligação da conduta descrita com o crime eleitoral previsto no artigo 326 A, da Lei 4737/65 (Código Eleitoral), com redação dada pela Lei 13.834/19, com o crime de Denunciação Caluniosa previsto no artigo 339, CP ou mesmo com crimes contra a honra previstos seja no Código Eleitoral seja no Código Penal, a situação se assemelharia à descrição de um homem como um bípede sem penas ou asas, [8] já que, na verdade, a exposição da conduta é, no mínimo, absolutamente lacunosa, para não dizer vazia. Não há indicação sobre alguma imputação concreta a alguém, muito menos menção à causa de uma apuração indevida contra algum sabidamente inocente decorrente da ação do increpado, simplesmente nada a não ser uma expressão verbal genérica. Retornando ao artigo 326 A, do Código Eleitoral é bom lembrar que o mantra equivocado de que este constituiria a incriminação legal das chamadas fake News, é totalmente fake. Esse dispositivo nada mais é do que uma forma especial de denunciação caluniosa com qualificação eleitoral. Nunca existiu no Brasil a criminalização de notícias falsas ou fake news em geral, isso é uma ilusão, para não dizer a maior das fake News. Ademais, como já se demonstrou, tal criminalização seria inviável dada a indeterminação das diversas circunstâncias, interpretações, opiniões etc. A única consequência de uma criminalização como essa é exatamente a que ocorre com a atual violação patente da legalidade, ou seja, opressão, abuso e censura. [9]

Outra alegação da Autoridade Policial destacada pelo Ministro é a de que se pretende com tais notícias e comentários influenciar a população em relação a determinado tema. Pergunta-se: desde quando o intuito de influenciar o público em relação a qualquer tema passível de discussão é uma conduta criminosa? O que fazem todos os órgãos de comunicação diuturnamente senão isso? O que fazem pessoas e grupos em geral que divulgam eventos culturais de toda espécie? O que fazem escritores, sejam eles poetas, ficcionistas ou autores de não ficção ligados a alguma área do saber? O que faz cada um de nós quando discute com alguém pessoalmente ou nas redes sociais acerca de uma questão qualquer?

No mínimo se a tal influência pretendida pode configurar algum crime como, por exemplo, apologia ao crime ou ao criminoso, racismo ou seja lá o que for, seria exigível a descrição pormenorizada da conduta criminosa e não a referência genérica ao intuito livre e natural de pretender influenciar terceiros com as ideias que lhe pareçam acertadas. E frise-se, não importando se tais ideias subjetiva ou objetivamente possam ser consideradas corretas, coerentes, verdadeiras ou absurdas, ridículas, estúpidas ou mesmo falsas. Por uma razão ou outra alguém estaria proibido de divulgar e tentar convencer as pessoas acerca da existência de extraterrestres e inclusive de um plano mirabolante de invasão e domínio da Terra? Estaria alguém proibido de questionar a lei natural da gravidade ou, como gostam tanto do exemplo, de defender que a Terra é plana? Estaria alguém proibido de tentar demonstrar a real existência de Lobisomens ou Vampiros, do Pé Grande ou do Curupira? Sendo as informações ou opiniões estapafúrdias ou contraditadas por outras, cabe ao livre mercado de ideias seu afastamento num ciclo natural e desimpedido, benfazejo até mesmo ao aprimoramento do conhecimento humano e ao banimento de dogmas indiscutíveis que escravizam e manietam o pensamento e a inteligência.

O embate de ideias contraditórias, segundo Mill, é altamente vantajoso. Caso uma ideia seja descabida, a força argumentativa da ideia oposta vencerá com facilidade a colisão, ensejando ainda mais o fortalecimento desta no seio da sociedade. O pensamento absurdo, dessa forma, favoreceria à ideia considerada mais correta ou objetivamente correta. Doutra banda, em não conseguindo a ideia dominante prevalecer no embate racional, seria certo considerar que a ideia oposta, inicialmente tida como absurda, devesse ser acolhida, sobrepondo-se às convicções antecedentes. Seja como for, a liberdade de expressão do pensamento foi de utilidade para a discussão pública, protegendo a humanidade do engessamento em dogmas perpetuados pela blindagem à crítica, mesmo em se tratando de uma ideia que acabou se apresentando como errônea. [10]

É bem verdade que os críticos do livre mercado de ideias como acrisolador dos pensamentos e suas expressões no debate público podem apresentar objeções com casos extremados como, a defesa do Nazismo, da discriminação de pessoas ou grupos, do genocídio etc. Há, porém, quem defenda mesmo a expressão desses discursos, embora deles discorde peremptoriamente. Não obstante, é possível estabelecer uma regra com exceções bem marcadas pela legislação, inclusive penal, sempre com muito cuidado para não ferir a liberdade de expressão e marcar de forma determinada as práticas proibidas e sancionadas, o que não se consegue com a descrição de condutas genéricas como aquela exposta pela Autoridade Policial e reproduzida acriticamente pelo Ministro Alexandre de Moraes, nem também com o recurso à expressão absolutamente aberta e, portanto, indefinida, do que se convencionou chamar genericamente de discurso do ódio (Hate Speech). A referência a essas espécies de expressões de sentido multifário, inseguro ou indeterminado constitui um perigo ou mesmo já um dano (potencial ou efetivo) à liberdade de expressão, informação, imprensa, pensamento e manifestação, além de uma evidente violação ao Princípio da Legalidade Estrita. Esta, como aduz Ferrajoli, para além da legalidade penal, exige uma chamada legalidade estrita, consistente não somente na previsão legal escrita da conduta incriminada, mas na necessidade de que tal conduta seja descrita no tipo penal de uma forma semanticamente segura e induvidosa. [11] E não só no tipo penal, mas também em toda e qualquer descrição de conduta imputada a alguém, a fim não somente de legitimar a persecução penal em qualquer de suas fases, mas de possibilitar o exercício do devido processo legal em suas vertentes da ampla defesa e do contraditório.

A redação dada pela Autoridade Policial, em sua precariedade técnica, acaba ensejando uma espécie de ato falho, porque depois de apresentar a afirmação de que a conduta perseguida é a de divulgação de notícias falsas ou parciais para o fim de influenciar pessoas, acaba reconhecendo que aquilo que descreveu não constitui ilícito penal, já que observa entre parêntesis: também incidindo na prática de tipos penais previstos na legislação (sic). Ora se as condutas descritas já fossem crimes, não seria possível utilizar a palavra também. Esta última transmite o recado de que as condutas anteriormente descritas não são práticas criminosas, não configuram tipos penais. A mensagem é a de que, além dessas condutas, que não seriam crimes (e realmente não são), haveria incidência em supostos tipos penais, os quais, porém, nem sequer são elencados ou indicados minimamente pela Autoridade Policial.

Finalmente, ainda no mesmo parágrafo destacado pelo Ministro, a Autoridade Policial se refere ao intento do agente de obter vantagens político partidárias e/ou financeiras (sic). Novamente se trata de descrição de conduta absolutamente atípica, a não ser que se pretenda criminalizar a atividade política em geral (que invariavelmente objetiva ganhos político partidários) e ainda a atividade jornalística e empresarial também em geral, onde é natural e economicamente salutar o intuito de lucro financeiro. Acaso se pretendesse punir todos os jornalistas que apresentam viés político ideológico, certamente haveria um agigantamento do problema de lotação carcerária no Brasil e o tão propalado estado de coisas inconstitucional [12] chegaria ao paroxismo. O mesmo se diga a respeito dos órgãos de imprensa que, por meio de seus dirigentes, objetivam ganhos financeiros. Seria necessário encarcerar e processar criminalmente à margem da legalidade simplesmente todos os jornais, revistas, programas radiofônicos, televisivos, transmitidos via internet, blogs etc., salvo aqueles comunitários sem fins lucrativos (v.g. rádios comunitárias, jornais de bairro distribuídos gratuitamente).

É difícil elucidar se é a Autoridade Policial que, descurando de sua função de primeiro filtro garantidor, se submeteu a uma missão de Procusto a qualquer preço, a fim, talvez, de agradar o Ministro que determinou a instauração do feito ou de não se envolver em polêmicas eventualmente prejudiciais à sua carreira; ou se é o próprio Ministro que, em um afã punitivista e opressor cego e incontido, faz vista grossa à inanidade jurídica da exposição da Autoridade Policial. Ou talvez, possam ser as duas coisas ao mesmo tempo, as quais se retroalimentam numa espécie de círculo vicioso.

Como bem lembram Rosa e Tobler:

Na mitologia grega, o personagem Procusto, da historia do herói Teseu, foi um ladrão que assolou a Grécia Antiga. O sádico Damastes ou Polipêmon, como também era chamado Procusto, hospedava viajantes em sua casa, situada na serra de Elêusis entre Trezena e Atenas, local onde articulava singular procedimento com seus hóspedes: deitava-os em uma cama de ferro que dispunha serrando os pés daqueles que excedessem o tamanho do leito bem como distendendo violentamente as pernas dos que não preenchessem todo o comprimento da cama. Todos acabavam vítimas. [13]

Pois é, parece que a Delegada e o Ministro estão usando conjuntamente do jeitinho de Procusto. O Ministro estaria sofrendo do que Rosa e Tobler chamam de Síndrome do Procusto Togado, a Delegada, se me é permitido parafrasear, de Síndrome do Procusto Armado. E na lição dos autores: O Direito não é o juiz (nem o Delegado) embora muitos pensem que esse cara sou eu. Só que não (interpolação nossa e grifos no original). [14]

A autoridade da lei se interpõe como ponto de equilíbrio e limite às chamadas autoridades, pois como bem nos lembra Soljenítsin, o poder ilimitado nas mãos de pessoas limitadas sempre leva à crueldade. [15] Não se trata de diminuir ou desprezar a capacidade de ninguém. Fato é que basta ser humano para ser limitado. Soljenítsin não fala apenas como um intelectual ou escritor, mas como uma pessoa que viveu o terror e foi testemunha da história. Lembra o autor em destaque que a concentração do poder em pessoas (sempre limitadas) permitiu que artigos do código penal soviético fossem submetidos às mais diversas interpretações e ampliações analógicas, sob uma visão arbitrária da lei que como o timão de uma carroça, volta-se para o lado onde se quer ir. Essa mesma lei passa a ser vista como um obstáculo ao juiz, que a instrumentaliza a seu bel prazer a fim de remover qualquer contenção sob a alegação de que o Código não pode ser uma pedra que barre o caminho do juiz. [16] Sim, pode e deve ser uma pedra, um limite à arbitrariedade judicial e de quaisquer outras autoridades. Claro que não num ambiente como o soviético, mas sim num pretenso Estado Democrático de Direito. Isso é de trivial conhecimento desde as legislações das Cidades Estado gregas na antiguidade, onde se dizia que governavam não os homens, mas as leis. [17]

No seguimento, o Ministro destaca nova manifestação da Autoridade Policial. Desta feita há a alegação de que Allan dos Santos atuaria a pretexto de jornalista. Não há descrição de qualquer prova ou indício de que Allan dos Santos não seja efetivamente uma pessoa dedicada à atividade jornalística. Ao reverso, ao que se sabe e se pode constatar na várias redes sociais, sites, programas etc., tal pessoa exerce e vive da profissão de jornalista. Para descaracterizar essa avalanche de evidências seriam necessárias uma nova avalanche de evidências em contrário e mais uma avalanche de provas, o que sequer é mencionado. Na verdade o fato de que Allan dos Santos é um jornalista é nada mais nada menos que notório e fatos notórios não precisam nem mesmo ser provados pela parte interessada, sendo a contraprova impossível (Notoria non egent probatione).

Fala-se em uma suposta associação que seria objeto de investigação, mas sem sequer esclarecer que espécie de associação seria (Criminosa???? Sociedade comercial???? Associação de Bairro????), seria uma referência ao crime do artigo 288, CP? Ou ao artigo 288 A, CP, já que a expressão Milícia Digital acha-se banalizada? Parece que não pode jamais se tratar deste último caso, uma vez que não existe crime algum de Milícia Digital e jamais seria possível subsumir o que quer que isso queira dizer à conduta descrita no artigo 288 A, CP! Afinal Milícia Digital não passa de uma espécie de gíria, um signo que não tem sequer significado muito menos referente, uma verdadeira fantasmagoria, e não deveria jamais ser utilizada por pessoas do meio técnico jurídico, constituindo um vício hediondo de terminologia. Seria uma Associação para o Tráfico (artigo 35 da Lei 12.343/06)? Não é possível, não há qualquer referência a drogas ilícitas. Estaria, enfim, se referindo a Autoridade Policial, corroborada pelo Ministro, a uma Organização Criminosa, conforme previsto no artigo 1º., § 1º. c/c artigo 2º., da Lei 12.850/13? Se sim, não há a mais mínima descrição das características necessárias à configuração de tal agrupamento infrator. Não se sabe se a Autoridade Policial quer dizer que Allan dos Santos integra ou participa de alguma das infrações de concurso necessário acima mencionadas, muito menos quais crimes cometeriam e quais seriam seus comparsas, mesmo porque também não se sabe nada a respeito das características dessa suposta associação ou organização. Nada além de flactus vocis sem qualquer sentido aferível e pior, sem indicação de correspondência no mundo real que se tenha transcrito nos ou carreado aos autos da famigerada investigação.

Mas, eis que surgem os supostos objetivos dessa associação indeterminada.

A Autoridade policial se refere a atacar integrantes de instituições públicas. Mas, atacar como? Fisicamente? Moralmente? Com palavras? Com gestos? Com sinais? Com desenhos? Com textos escritos? Quais os meios utilizados? Não há descrição mínima! Ou será que por atacar se entende o que Allan dos Santos e todos os jornalistas e até mesmo pessoas em geral fazem diariamente? Criticar agentes públicos, funcionários públicos e agentes políticos? Isso é proibido? Pior, isso é crime!? Seria isso seletivamente proibido, ou seja, proibido para alguns jornalistas e algumas pessoas e não para outras? Proibido com relação a certos agentes públicos e não com relação a outros? Mas isso não geraria insegurança jurídica e não violaria a isonomia? Ao que se sabia nem mesmo na época do Regime Militar havia algum crime previsto em lei consistente nessas atitudes críticas! Talvez se encontrem crimes dessa espécie no Direito Comparado, visitando legislações como a de Cuba, Coreia do Norte, China etc. No Brasil, contudo, foi o próprio Ministro Alexandre de Moraes quem afirmou categoricamente e em bom tom quando proferia voto, que quem não quer ser alvo de críticas ou sátiras não deve se apresentar para ocupar cargos públicos ou políticos, sendo inconstitucional qualquer intervenção constritiva estatal relativa à liberdade de expressão. Afirmação esta devidamente documentada em áudio e vídeo no Youtube. [18] Alegam os detratores que Fernando Henrique Cardoso teria mandado esquecerem tudo que ele escreveu. Por seu turno, o citado político nega lembrar-se de alguma vez ter proferido tal afirmação. Não há gravação e então a questão virou uma polêmica e faz parte do folclore político brasileiro. [19] Porém, o que dizer do Ministro Alexandre de Moraes? Afinal, seu voto proferido vale? Ou devemos esquecer o que escreveu e assinou? Vale? Ou devemos esquecer o que falou? Ao que parece, houve uma enorme mudança de convicção acerca do tema da liberdade de expressão por parte do nobre Ministro. E nesse caso temos áudio e vídeo perenizados no Youtube.

Outra conduta apontada pela Autoridade Policial e corroborada pelo Ministro seria a de desacreditar o processo eleitoral brasileiro. Indaga-se novamente, qual é o crime que tem como descrição essa conduta, seja na legislação codificada, seja na legislação esparsa ou mesmo na legislação eleitoral especificamente? É proibido expressar descrença ou insegurança quanto ao sistema eleitoral, quanto à eficácia e segurança das urnas eletrônicas e do sistema de apuração? É proibido expor a verdade de que as urnas brasileiras são de uma geração bastante antiga e ultrapassada? [20] O brasileiro em geral, não somente Allan, é obrigado a confiar na Justiça Eleitoral e jamais colocar em dúvida, de qualquer forma, a lisura dos pleitos? É de se pensar para que serve então a própria Justiça Eleitoral, senão para solver questões que envolvam suspeitas de eventuais fraudes? Colocar em dúvida o sistema e pedir maior segurança e exigir apurações sobre a efetividade deste é crime? É proibido? Se isso tudo é crime por que não era quando, no governo Lula, por exemplo, a questão do voto impresso auditável foi levantada e foi aprovado tal sistema, somente não vigorando na prática porque acabou sendo rechaçado por decisão do STF? [21] Antes podia haver questionamento, agora não? Mudou alguma coisa na legislação a respeito disso? Não? Então o que mudou? Seria o subjetivismo da Autoridade Policial e do próprio STF ou ao menos do Ministro Alexandre de Moraes? Mas, o Direito Penal e suas consequências altamente prejudiciais aos sujeitos passivos da persecução criminal podem se coadunar com voluntarismos ou subjetivismos?

Outra conduta seria a de reforçar o discurso de polarização. Novamente é impossível encontrar o tipo penal em que se encaixaria essa ação. Ademais, existe alguma norma legal no Brasil que obrigue as pessoas a se colocarem em posições medianeiras, como se diz popularmente, em cima do muro ou, como tem sido modismo, buscarem uma terceira via conciliadora? As pessoas estão proibidas de adotar posições diametralmente opostas às dos demais ou de determinados grupos? A defesa de uma posição totalmente oposta a um grupo, corrente de pensamento, corrente política, filosófica etc., é vedada? Parece que não, ou melhor, é certeza absoluta que não.

Finalmente, afirma a Autoridade Policial que Allan dos Santos e a tal associação cometem o crime de gerar animosidade dentro da sociedade brasileira, promovendo o descrédito dos poderes da república. Existe o crime de gerar animosidade? Não. Aliás, há uma infinidade de condutas que podem gerar animosidade nas relações intersubjetivas e grupais. Isso passa pela adoção de um time de futebol de predileção, a comentários indiscretos, discordâncias de várias espécies etc. A discordância e a animosidade em si não são, nunca foram e nunca devem ser crimes e nem mesmo objeto de qualquer proibição. As pessoas são singulares e em suas singularidades sempre apresentarão discordâncias e até animosidades, as quais devem ser objeto de administração sem repressão numa sociedade minimamente democrática e saudável. Doentia, patológica seria uma sociedade em que não existam conflitos de qualquer espécie. Seriam seus componentes autômatos catatônicos que concordam com qualquer coisa ou estariam sob o tacão de um regime totalitário e violento ao ponto de reprimir a própria natureza humana, isso considerando que não vivemos em grupos sociais de santos ou anjos. Neste ponto pode-se afirmar com Durkheim que a pretensão de uma sociedade sem conflito, sem animosidade, constitui uma tremenda confusão entre o fisiológico e o patológico. [22] O último tópico das condutas mescla um non sequitur com mais uma descrição de conduta atípica. O non sequitur é uma falácia lógica que ocorre quando a conclusão não decorre das premissas. No caso ora em análise é visível que o descrédito de poderes da república ou de qualquer serviço público não pode decorrer de qualquer produção de animosidade entre as pessoas. O crédito de um poder ou de qualquer serviço público ou mesmo privado decorre da sua confiabilidade, da qualidade dos serviços prestados aos cidadãos ou clientes. Ademais, a eventual produção de descrédito de poderes da república ou de quaisquer serviços públicos devido a críticas formuladas somente ocorrerá se esses poderes ou serviços já não contarem com a confiança da população. É fácil testar isso empiricamente. Tente desacreditar os Bombeiros, será muito difícil. Agora, tente desacreditar um político profissional, será muitíssimo fácil. O crédito ou descrédito de uma instituição é construído dia a dia por ela mesma, por seus componentes humanos e suas ações e omissões concretas. A crítica, ainda que contundente, de qualquer poder, serviço ou instituição não é crime, é direito de manifestação e expressão de qualquer do povo, mormente dos jornalistas e comunicadores em geral. Se por acaso gerar o descrédito de poderes ou quaisquer instituições mediante críticas formuladas fosse crime, então isso corresponderia à criação ipso facto de um crime impossível nos termos do artigo 17, CP, a uma porque a instituição sadia e confiável não é abalável por críticas desprovidas de sustento, surgindo então a ineficácia absoluta do meio; a duas porque se uma instituição já é desacreditada, não há crédito a ser destruído, não há bem jurídico a ser tutelado, vindo à baila a absoluta impropriedade do objeto. O suposto crime, acaso existisse, acaso tivesse sido objeto de previsão legal, seria uma figura criminosa natimorta. O só fato de uma instituição temer por seu descrédito devido a críticas de um jornalista ou de quem quer que seja, já é sintoma de sua baixa credibilidade, a qual se reflete em baixa autoconfiança em sua capacidade de manutenção de uma imagem respeitável. O problema não está na crítica nem nos críticos, está na própria instituição. É como aquele meme do Instagram em que as pessoas enviam reclamações de uma lanchonete e o proprietário ou responsável, ao invés de buscar corrigir os erros e desculpar-se, passa a destratar os clientes descontentes e adotar uma posição defensiva e arrogante a qualquer custo.

Para fechar esse parágrafo, pinçado pelo Ministro, da manifestação da Autoridade Policial, é interessante notar que após a descrição acima, desprovida de qualquer conteúdo juridicamente aproveitável, encerra com a expressão além de outros crimes (sic). Dizer além de outros crimes e não indicar quais sejam é o mesmo que não dizer nada. Ademais, para usar essa expressão seria pressuposto que antes dela houvesse a descrição de alguns crimes, o que, como demonstrado, não ocorreu em momento algum.

A seguir o Ministro reproduz a apresentação da dinâmica supostamente criminosa ofertada pela Polícia Federal, a qual desde logo consiste em transmissão de informações (sic). É de se indagar logo de início: desde quando transmitir informações é crime?

Ah, mas essas transmissões de informações são dotadas de certas características que parecem ser apresentadas como espécies de malla in se, senão vejamos:

  • São feitas em alto volume e por multicanais, implicando em variedade e grande quantidade de fontes. Não parece que isso é uma descrição que caberia a qualquer veículo de informação que pretenda atingir ao público de maneira considerável? Então o fato de que grandes mídias tenham várias bases e filiais no país e no estrangeiro, bem como vários canais, inclusive em redes sociais, é crime? A reiteração de notícias por várias fontes de informação que ocorre cotidianamente é crime? Meu avô costumava assistir vários telejornais e ler vários jornais todos os dias. No fim do dia ele sempre brincava: esses jornais noticiam todos as mesmas coisas! Eu sempre pensei que era uma brincadeira e não a descrição de uma ignominiosa conduta criminosa da imprensa em geral.

  • Apresentação rápida, contínua e repetitiva, focada na formação de uma primeira impressão duradoura no receptor a qual gera familiaridade com a informação e, consequentemente sua aceitação. A rapidez na atividade jornalística, a ideia de ser o primeiro veículo a apresentar dada notícia é conhecida pela gíria de Furo. Ao que se saiba o furo jornalístico nunca foi crime e é considerado uma virtude nessa atividade, um sucesso. O sucesso é agora também criminalizado? A continuidade e repetição da informação, como já visto, é algo inerente ao meio noticioso. E o intento de formar convicções com a emissão tanto de notícias de fatos como de opiniões é absolutamente natural nessa atividade. Procurar convencer os ouvintes, leitores, internautas, telespectadores nunca foi crime. Será que agora é? Por quê? Por ato de vontade de alguma Autoridade Policial ou Judicial? Mas, isso viola a legalidade e também, como já visto, a isonomia, já que seria crime para alguns e não para outros que praticam a mesmíssima conduta. Além disso, faça-se como quiser, é preciso ter em mente que as pessoas não precisam ser tuteladas em sua consciência por esta ou aquela autoridade ou órgão estatal. São perfeitamente capazes de formar suas opiniões, mediante o acesso aos vários canais disponíveis. Ao reverso, a prática de uma espécie de paternalismo sufocante, que pretende escolher o que é verdade, o que pode ou não ser dito ou divulgado, é que tolhe a autonomia das pessoas e as pode realmente transformar em uma massa sem espaço para o livre pensamento e a individualidade.

  • A atuação seria sem compromisso com a verdade. Aqui, remetemos o leitor às observações já feitas anteriormente a respeito da indeterminação dessa espécie de alegação. Afinal, quem irá decidir o que é verdade ou mentira? Quais critérios? Não haverá confusão entre juízos de valor e juízos de fato, entre opinião e informação? Não se está dizendo que a verdade não exista no acatamento de um relativismo tosco. Entretanto, é preciso observar que esse mantra de relativismo é muitas vezes acenado e festejado exatamente pelas pessoas que agora vêm falar tão veementemente em defesa da verdade. O que se quer dizer aqui é que a verdade (que realmente existe) não pode ser imposta por um grupo, por um órgão estatal, por uma autoridade, ela deve ser objeto de descoberta pelo indivíduo autônomo, senhor de si e livre de amarras ideológicas e totalitárias. É fato que no seio do STF e enquanto Presidente do órgão na época, já houve quem dissesse que "enquanto Judiciário, enquanto Suprema corte, nós somos editores de um país inteiro." [23] Pois é, mas isso não soa como muito democrático, legal ou constitucional, parece muito mais censura ou ditadura judicial, parece que a preocupação não é jamais com a verdade, mas com a capacidade de impor uma verdade. É muito importante ter em mente que mesmo quando, por alguma coincidência do destino, a verdade imposta reflita a verdade real, o fato de ter sido imposta pela força corresponde à situação em que se faz a coisa certa pelos meios ou pela forma errada. E saliente-se que se uma suposta verdade precisa ser imposta, normalmente não é genuína.

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  • As informações seriam desprovidas de compromisso com a consistência do discurso ao longo do tempo (i.e uma nova difusão pode contrariar absolutamente a anterior sem que isso gere perda de credibilidade do emissor). Causa perplexidade que pessoas dotadas de certo grau de cultura sejam capazes de apresentar tal fato da vida como algo que pode ser vicioso e, pior, criminoso!

Na Grécia Antiga já se vislumbrava o devir como integrante da natureza humana:

Em rio não se pode entrar duas vezes no mesmo, segundo Heráclito, nem substância mortal tocar duas vezes na mesma condição; mas pela intensidade e rapidez da mudança dispersa e de novo reúne (ou melhor, nem mesmo de novo nem depois, mas ao mesmo tempo) compõe-se e desiste, aproxima-se e afasta-se. [24]

Um pouco de literatura também nos pode tirar do fundo do poço cultural e antropológico. Sugestivo é o texto intitulado O Reencontro, de autoria de Brecht:

Um homem que o sr. K. não via há muito o saudou com as palavras: O senhor não mudou nada. Oh!, fez o sr. K., empalidecendo. [25]

Comentando essa passagem, Vilma Botrel Coutinho de Melo, explica que a reação do sr. K. é diversa da que se esperaria, considerando o aspecto estético e de saúde física embutido na saudação do antigo conhecido. Brecht atribui ao sr. K. uma reação muito mais profunda, ligada à questão existencial ou à própria natureza humana. Por isso o sr. K. se mostra perplexo, não se alegrando com o fato de não ter mudado. Ele empalidece, porque acredita firmemente que aquele que pensa está sempre mudando. O próprio pensamento muda, de acordo com a situação (grifo nosso). [26]

A partir do momento em que mudar se transformou em crime, somente não puniríamos Raul Seixas, louvando aquela Metamorfose Ambulante, por Apologia ao Crime e ao Criminoso devido à extinção de punibilidade pela morte do agente (artigo 107, I, CP)!!! Afinal, que hediondo seria dizer:

Prefiro ser essa metamorfose ambulante/ Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante/ Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo/ Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo/ Eu quero dizer agora o oposto do que eu disse antes. [27]

E no caso de Raul Seixas ainda teríamos a agravante já mencionada como fundamento da convicção da Autoridade Policial e do Ministro, de que se utilizava do recurso da repetição exaustiva na formação dos versos, dando ênfase à ideia, e na execução da canção, usando isso como um refrão! Realmente, se algum crime houvesse em tudo isso, Seixas teria sido um dos criminosos mais perigosos do Brasil e não um artista de reconhecido talento. E talvez tenha sido mesmo um bandido, quem sabe o que nossas autoridades iriam entender hoje? Afinal ele também afirma ser um Cowboy fora da lei e não ser besta pra tirar onda de herói. Ademais, na mesma letra Seixas criticaria a noção hoje corrente de fake News, que pretende impor algumas verdades e não raras vezes afirmar que estas somente podem ser encontradas nas chamadas grandes mídias. Seixas dizia: Eu não preciso ler jornais/ Mentir sozinho eu sou capaz/Não quero ir de encontro ao azar. [28] Nossa, como esse sujeito seria um subversivo da lei e da ordem hoje em dia!

Afinal, somente Allan dos Santos e alguns escolhidos a dedo não podem apresentar incoerências, inconsistências ou simplesmente mudar de ideia, descobrir novos fatos e alterar uma notícia ou um comentário anterior? Não são os órgãos de imprensa que, de tempos em tempos, são obrigados a se desdizer porque noticiaram falsidades? Muitas vezes até por ordem judicial (civil, não penal, já que fake News é fato atípico penalmente)? Não são esses mesmos órgãos da grande mídia que ora dizem que vacinas, por exemplo, tem 100% de eficácia para evitar casos graves, ora dizem que não é bem assim? Não são esses órgãos que noticiam que um dado Senador está envolvido em diversos casos de corrupção, desvios etc. e , logo depois, o exaltam como a um Santo ou herói como presidente, relator ou membro de uma CPI? Não é fato de que componentes da chamada grande mídia tuitam opiniões ou noticiam fatos e, quando desmentidos vergonhosamente apagam essas emissões? Não há órgãos de imprensa e TV que abominam campeonatos de futebol em meio à pandemia, mas, em seguida, quando vão transmitir outro campeonato, passam a defender a ida aos estádios e o saudável acompanhamento do evento esportivo? Nem vamos falar a respeito de guinadas jurisprudenciais que solapam totalmente a mais mínima segurança jurídica no país sobre diversos temas. Muito menos do critério absolutamente variável para a eleição de quem pode ou não pode mudar de opinião, de qual mudança de opinião, de qual alteração de conteúdo é ou não criminosa. É melhor nem falar disso. Na realidade, a única coisa que importa é que mudar de opinião ou perspectiva não é, nunca foi e nunca poderá (ou poderia) ser crime.

Depois de toda essa verborragia vazia, consta que a Autoridade Policial teria encontrado indícios da prática de vários crimes por Allan dos Santos, os quais se dariam de forma reiterada. São finalmente nomeados os seguintes delitos: ameaça, crimes contra a honra e incitação à prática de crimes, bem como o tipo penal decorrente de integrar organização criminosa (sic). São ainda apontados os artigos do Código Penal e da legislação esparsa em tese infringidos: art. 2º da Lei 12.850/2013; arts. 138, 139, 140, 286 e outros do Código Penal; art. 20, § 2º, da Lei 7.716/1989 (sic.).

Sem nenhuma observação crítica o Ministro Alexandre de Moraes apenas transcreve o parecer da Polícia Federal.

Parece não notar que, além do fato já bem exposto de que não há qualquer descrição de conduta que se possa amoldar aos tipos penais elencados, também não existe coerência entre os crimes mencionados pelos seus nomen juris num primeiro momento e a relação de artigos de lei arrolados. O crime de Ameaça é apontado, segundo o Ministro, pela Polícia Federal, mas não consta citação do artigo 147, CP na relação de tipos penais que vem em seguida. Também, como já visto, a Autoridade Policial inicialmente menciona uma suposta associação, deixando indefinida a prática criminal a que se referia, e finalmente vem a afirmar que se trata de uma organização criminosa. Não estaria aqui, de acordo com os critérios antes expostos no corpo do decisum, havendo incidência de falta de compromisso com a consistência do discurso ao longo do tempo, o que seria uma conduta criminosa? Na minha visão há apenas contradição ou pelo menos incoerência ou até mesmo falta de rigor terminológico, o que não é crime, é erro. Mas, não fui eu quem disse que a falta de compromisso com a consistência do discurso seria indicadora de práticas criminosas. De qualquer forma, indicação de nomen juris de ilícitos penais, bem como de artigos de lei, sem a adequada descrição de efetivas condutas humanas que se subsumam a eles não pode jamais fundamentar qualquer espécie de imputação.

Mas, a Autoridade Policial novamente produz um simulacro de descrição de condutas, o qual é acriticamente reproduzido pelo Ministro Alexandre de Moraes em sua decisão. Em nova manifestação vazia de conteúdo, a Autoridade Policial aduz que Allan dos Santos desde 2018, em datas não especificadas, teria aderido a uma suposta organização criminosa para a prática dos crimes acima transcritos, com o fito de auferir vantagem econômica com monetização e doações. Devido a tais suposta condutas não descritas em momento algum, teria desestabilizado o Estado Democrático de Direito. Os crimes consistiriam em postagens em redes sociais, emissão de opiniões, reportagens, entrevistas em mídias de comunicação (grifo nosso). E mais, o dolo específico de tais crimes seria a disseminação e fortalecimento do discurso de ódio e de polarização, com ainda outra finalidade, qual seja, a de obter vantagens de natureza financeira e político ideológica.

Repete-se a menção a uma suposta organização criminosa sem a mais mínima descrição de sua composição, organização, estrutura, modus operandi concreto, dos crimes acessórios que seriam seu objetivo (reforce-se que citar nomen juris e artigos de lei não é fundamentar; às pessoas devem ser imputados fatos criminosos, não artigos de lei ou nomes de crimes).

A finalidade de Allan dos Santos, tida como criminosa é apontada como aquela de auferir vantagem econômica. Mas, para que o auferir vantagem econômica possa ser crime, é necessário expor induvidosamente qual a prática criminosa que tem por fim essa espécie de vantagem (v.g. furto, estelionato, crimes contra a ordem tributária, corrupção ativa etc.). Ou seja, o só fato de se pretender auferir vantagem econômica não é crime, é, aliás, o que impele a maioria das pessoas ao exercício de uma atividade laboral, dentre as quais a de jornalista ou comunicador. Ah, mas talvez a Autoridade Policial tenha apontado um meio criminoso de auferimento de vantagens econômicas perpetrado por Allan e por toda essa suposta organização criminosa. Só que não. Os meios indicados pela Autoridade são a monetização e doação voluntária de seguidores maiores e capazes, os quais simpatizam com o trabalho do envolvido. A monetização em redes sociais é corriqueira. Somente Allan dos Santos e pessoas escolhidas a dedo não podem receber vantagens financeiras em suas atividades nas redes sociais, enquanto outras auferem milhões sem qualquer espécie de questionamento? Infelizmente nunca recebi doações de quem quer que fosse, mas fico preocupado com o fato de que se um dia recebesse uma doação voluntária ou até mesmo espontânea de alguém maior e capaz, estaria incorrendo em crime ou ao menos em uma espécie de dolo específico de natureza criminal. O ato de aceitar doações foi agora erigido a crime ou a intuito criminoso. É preciso urgentemente rever as leis penais e também o Código Civil, pois, ao que consta, a doação espontânea ou voluntária, livre e consciente, realizada por sujeito capaz é um instituto respeitável e regular há séculos.

Ficam a esclarecer também dois pontos cruciais:

  1. Como as condutas de Allan dos Santos e outras pessoas teriam sido capazes de desestabilizar o Estado Democrático de Direito? Isso é alegado, mas jamais descrito.
  2. Talvez a falta de descrição esteja ligada a este segundo ponto. Salvo situações inusitadas como uma revolução intestina, a ação de grupos armados civis ou militares, é muito difícil desestabilizar o Estado Democrático ou a própria configuração da Democracia. Isso porque é impossível desestabilizar aquilo que é, por natureza, constitutivamente instável. A Democracia se caracteriza pela mudança, pela alternância e alteridade do poder, pelo livre debate de ideias, pela livre crítica das instituições (as quais não são democráticas por si mesmas, mas o são de acordo com o seu funcionamento efetivo, podendo perfeitamente haver um executivo ditatorial, um legislativo totalitário e uma ditadura do judiciário, por exemplo). Aí está a força e a fraqueza da Democracia, lembrando a famosa frase de Hölderlin quanto ao fato de que muitas vezes onde está a doença também está a cura. Mais exatamente em suas palavras:

Ora, onde mora o perigo, é lá que também cresce o que salva. [29]

Em estudo anterior intitulado Qual Democracia? já refleti sobre essa questão tão importante, conforme segue: [30]

É perceptível que a Democracia, diversamente das utopias totalitárias como o socialismo ou o comunismo, não tem a pretensão megalômana de criar um Paraíso Terrestre. É inerente ao pensamento democrático o reconhecimento da irredutível imperfeição de toda ordem social. Justamente essa inerente imperfeição é que impõe as liberdades democráticas e a possibilidade de revisão contínua das ideias. Esse reconhecimento da imperfeição inerente à ordem social não significa de modo algum uma posição de fatalismo, mas sim o reconhecimento da necessidade de aprimoramento contínuo.

Basta ao interessado um breve estudo da Filosofia Grega para que perca qualquer grande confiança nos efeitos milagrosos da Teoria Política. Isso porque logo notará que o estudo das formas políticas parece ter surgido do fracasso dos sistemas políticos, e que nem Platão nem Aristóteles estavam muito preocupados com a predição ou eram otimistas com relação ao futuro. [31]

Isso não significa desordem, mas o que se pode chamar de uma sociedade aberta e livre, entendida como um conflito contínuo interrompido periodicamente por compromissos, os quais, por sua vez se convertem em novos conflitos que desembocam em novos compromissos e assim sucessivamente. O controle do poder está baseado no compromisso entre o legislativo, o executivo e o judiciário. Uma sociedade desprovida de compromissos é totalitária. Por isso se pode descrever uma sociedade aberta e livre nessa palavra: compromisso. Compromisso este construído no debate livre de ideias, na autocrítica do que está posto e na ciência de que o que agora se põe não é jamais inquestionável. [32] Por isso é correto afirmar que o conflito é o coração mesmo de uma sociedade aberta e livre. Se alguém desejar compor a trilha sonora da democracia, o tema dominante seria a harmonia da dissonância. [33]

O que pode desestabilizar ou até mesmo desnaturar a Democracia não é o conflito, o debate, a crítica (ainda que grosseira ou altamente incisiva), mas a submissão à força, o quietismo heteronomamente imposto, a apatia ou a indiferença, a massificação e o automatismo intelectual, político e social.

Quando a Autoridade Policial, secundada por transcrição acrítica pelo Ministro, pretende descrever condutas criminosas mais detalhadamente, aí então é que a situação se torna mais alarmante. Segundo sua exposição, os crimes consistiriam em postagens em redes sociais, emissão de opiniões, reportagens, entrevistas em mídias de comunicação. Parece crucial a indagação de como foi possível chegarmos a esse ponto? Como foi que postagens em redes sociais são agora descritas como crimes, sem qualquer espécie de qualificação, de especificação? Como é que se pode aceitar que a emissão de opiniões possa ser um crime? Assim como reportagens e entrevistas em mídias de comunicação? E ainda ser um crime que se erige em nome da tutela de um suposto Estado Democrático de Direito!? Observe-se que em nenhum dos casos há descrição de alguma questão específica que tornaria a conduta criminosa. E ainda que se pretendesse uma descrição dessa espécie, somente se podem imaginar abusos de autoridade e lesão à liberdade de expressão, imprensa, informação e pensamento. Até mesmo a defesa de sistemas políticos totalitários numa democracia é admissível, senão como explicar a existência um Partido Comunista que tem pretensões de implantar essa espécie de regime no país? Como não perseguir criminalmente pessoas que teimam em defender regimes como os da China, da Coreia do Norte, de Cuba, da Venezuela etc.? A criminalização da crítica (ainda que contundente) corresponderia a proibir e criminalizar a Marcha da Maconha como Apologia ao Crime e ao Criminoso ou perseguir um estudioso de Criminologia ou Direito Penal, tendo em vista sua defesa convicta da liberação das drogas, considerando-o como um colaborador do tráfico! Mas, será que estamos diante de uma seleção de alvos a serem perseguidos, de uma ação dirigida pela chamada tolerância repressiva de acordo com o modelo de Marcuse? Efetivamente não parece ser possível negar essa situação concreta, seja ela perpetrada de forma consciente ou inconsciente. Afinal o autor por último citado defendia abertamente essa estratégia política e intelectual consistente na tolerância libertadora que significa intolerância contra os movimentos de direita e tolerância em relação a movimentos de esquerda. [34]

Mais uma vez, agora sob a qualificação de dolo específico apresenta a Autoridade Policial uma finalidade especial de disseminação de um discurso de ódio e polarização. Seja lá o que se queira entender como discurso de ódio (já vimos a indefinição desse termo), não há nenhuma descrição ou pretensão de descrição. Quanto à polarização, já se deixou consignado e demonstrado que a defesa de uma posição, seja ela mais ou menos radical de acordo com uma ideologia ou uma convicção não é nem jamais foi proibida, ninguém é obrigado a ser, defender ou lutar por uma posição medianeira ou uma chamada terceira via. E a finalização se dá com outro dolo específico, que consistiria no intuito de obter vantagens financeiras e político partidárias. Novamente é preciso repetir, embora já esteja se tornando cansativo, que o intento de obter lucros ou vantagens financeiras com sua atividade laboral não é e não pode ser crime. Também não é e não pode ser crime a atitude de defender convicções políticas e/ou ideológicas. O contraponto a qualquer defesa dessa espécie será feito naturalmente por aqueles que discordam dessas ideias. No momento em que se pretende calar, sob ameaça ou execução de criminalização, a defesa de um determinado viés político ideológico, aí é que se fulmina sem piedade qualquer chance de debate democrático. A Democracia não é um monólogo, mas um diálogo ou mesmo uma discussão.

É com fulcro nessa fundamentação material nula que a Autoridade Policial pleiteia a Prisão Preventiva do jornalista Allan dos Santos, sendo sua primeira justificativa para a medida extrema, fazer cessar a prática criminosa! Eis o uso espúrio do fundamento da chamada ordem pública como sustento da Prisão Preventiva. Cessar a prática criminosa, tudo bem, mas qual ou quais???? Não há a mais mínima descrição de qualquer crime em todo o arrazoado da Autoridade Policial repetido em seus pontos cruciais pelo Ministro Alexandre de Moraes! Para fundar a Prisão Provisória na finalidade de cessar a prática criminosa o mínimo que se esperaria seria a descrição convincente de efetivas práticas criminosas realizadas pelo sujeito passivo da medida constritiva pleiteada. Em seguida menciona a necessidade da prisão para garantir a aplicação da lei penal, já que o jornalista está residindo nos EUA. A considerar essa espécie de fundamento como válido, seguiria que todo estrangeiro ou brasileiro investigado ou processado que estivesse fora do país teria de ser necessariamente preso preventivamente, o que é um absurdo. Ainda acresce a conveniência da instrução criminal, alegando que com a prisão seriam amealhados novos indícios e provas de sua atividade criminosa. Será que a Autoridade Policial esqueceu que o investigado ou réu tem direito ao silêncio? Tem direito a não autoincriminação? E, segundo o STF, sequer é obrigado a prestar interrogatório e não pode nem mesmo ser conduzido coercitivamente? [35] Será que a Autoridade Policial está cometendo um ato falho e admitindo implicitamente que a prisão servirá para intimidação, coação e obtenção de confissões inválidas, o que é absolutamente vedado? [36] Sobre essa espúria conversão da prisão provisória em instrumento de coação de investigados já nos falam com propriedade Trindade e Streck. Descrevem os autores o surgimento de uma nova modalidade de violência simbólica, psicológica e até física, ou seja, o uso da constrição da liberdade como meio de obtenção de prova, por vezes de delação. Claramente uma modalidade de prisão indevida, a que os autores dão o epíteto de prisão para o acusado abrir o bico. [37]

Ao contrário do Ministro Alexandre de Moraes, que corrobora as razões ofertadas pela Autoridade Policial, a Procuradoria Geral da República manifestou-se pelo indeferimento da Prisão Preventiva. Isso é algo bastante relevante, vez que se trata do verdadeiro titular da ação penal e, portanto, maior interessado naqueles que seriam supostamente os fundamentos expostos pela Autoridade Policial. Mesmo assim, o Ministro seguiu em sua decisão desprezando a manifestação do Ministério Público, e na fase de relatório do decisum sequer expondo os fundamentos discordantes para posterior contradição. Há longa exposição dos argumentos da Autoridade Policial, vazios de conteúdo em termos descritivos, conforme demonstrado, e apenas três linhas, informando que a PGR se manifestou contrariamente, sem qualquer exposição dos motivos apresentados pelo órgão. Isso, no mínimo, indica uma posição judicial de primado da hipótese sobre os fatos, de modo que parece que já havia uma convicção formada e apenas se procura construir uma argumentação que a subsidie, não importando sequer considerar alegações contrárias. [38]

Sabe-se que o magistrado não é um homologador automático, uma espécie de carimbador maluco das manifestações ministeriais, mas isso não significa que possa tomar suas decisões sem um mínimo de enfrentamento das razões aduzidas pelo titular da ação penal. Essa atitude não somente viola o preceito constitucional que diz respeito a essa titularidade, mas conduz à nulidade devido à falta de fundamentação (inteligência do artigo 93, IX, CF).

Findo o relatório do pedido policial, passa o Ministro Alexandre de Moraes a tomar sua decisão. E nada mais ocorre que não seja um procedimento alquímico encetado sobre o material aduzido pela Autoridade Policial, onde, parafraseando Anders, tudo que é real se converte em fantasmagórico, tudo que é fictício em real. [39]

Sua primeira manifestação é referir-se ao fato de que os atuais autos (IP STF 4874) são originários do famigerado Inquérito dos Atos Antidemocráticos (IP STF n. 4228), o qual foi arquivado por promoção da Procuradoria Geral da República. Acontece que o Ministro, inusitadamente, ao arquivar o feito acima, imediatamente instaurou novo inquérito para apuração dos mesmos fatos, no bojo do qual agora se pleiteava a Prisão Preventiva de Allan dos Santos! [40]

STF n. 4228), o qual foi arquivado por promoção da Procuradoria Geral da República. Acontece que

É bem verdade que o artigo 18, CPP permite o desarquivamento de Inquéritos Policiais e prosseguimento de investigações, desde que não operada a extinção da punibilidade de eventuais ilícitos. Entretanto, é necessário que surjam fatos novos. Isso porque não cabe exercer persecução penal, ainda que em fase investigatória, de maneira desarrazoada e sem limite temporal (Princípio da Razoabilidade dos Prazos – CF, artigo 5º.,LXXVIII). Aceitar isso seria permitir que o Estado mantivesse uma persecução, em especial uma investigação indeterminada, pairando sobre as pessoas tal qual uma “Espada de Dâmocles”, em escrachada manobra opressiva. Não por outros motivos é que o artigo 18, CPP somente permite o desarquivamento no caso de notícia de fatos novos, bem como assim o faz, em sua dicção, a Súmula 524, STF:

“Arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do promotor de justiça, não pode a ação penal ser iniciada sem novas provas”.

Já se inicia, portanto, a fundamentação do Ministro, por caminhos tortos. A manobra utilizada de arquivar um inquérito e, sem qualquer fato novo, com fulcro nos mesmos elementos, abrir outro em seu lugar, contornando a questão do desarquivamento, é de ilegalidade e inconstitucionalidade patentes, vulnerando de morte a titularidade da ação penal, a razoabilidade dos prazos, a razoabilidade geral e o mecanismo legal de reabertura de investigações.

Trata-se exatamente do que já alerta Bonfim, com espeque no escolio de Sérgio Marcos de Moraes Pitombo:

É de notar que a prova exigida pelo dispositivo legal deve ser materialmente nova, vale dizer, aquela de que não se tinha notícia no curso das investigações. Assim “novas provas ou outras provas consistem naquelas cujo conhecimento emerge superveniente ao ato decisório. Não se cuida, por óbvio, de reciclar as provas já conhecidas ou de reinterpretar o sabido e afirmado, na decisão anterior” (negrito nosso). [41]

Prossegue o Ministro falando em atentar contra a “Democracia e o Estado de Direito” sem descrição de condutas efetivas e arrola tipos penais, também sem indicar qualquer subsunção.

É feita menção a dispositivos da revogada Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/83). Sabe-se que a lei revogadora (Lei 14.197/21) tem “vacatio legis” de 90 dias e somente entrará em vigor em dezembro de 2021. Acontece que no campo penal não parece sustentável pretender fundamentar a prisão, ainda que provisória, de alguém, em dispositivos cuja revogação já foi formalmente decretada, ou seja, crimes moribundos juridicamente. Esses cadáveres jurídicos adiados [42] certamente não constituem uma boa justa causa para o decreto de medidas constritivas contra ninguém, mesmo porque uma prisão provisória, na qualidade de cautelar que é, não se constitui em medida satisfativa, mas acessória de futuro processo principal (Princípio da Acessoriedade das Cautelares). Indaga-se: qual processo principal se pode vislumbrar num futuro, que certamente será posterior a dezembro vindouro, com base em artigos revogados da Lei de Segurança Nacional? A prisão decretada se apresenta, portanto, como uma espécie de zumbi com pretensões a futura assombração.

Faz-se referência ao artigo 18 da LSN que menciona a tentativa de impedimento do exercício dos poderes da União ou dos Estados. E o crime não é de forma livre, mas de forma vinculada, ou seja, deve ser perpetrado, necessariamente, por meio de “violência ou grave ameaça”. Ora, primeiro não há descrição de condutas que configurem grave ameaça e muito menos violência. Depois, nada existe descrito ou mesmo que se saiba que possa ser conduta eficaz para o fim de impedir o exercício de poderes da União ou dos Estados, seja por parte de Allan dos Santos ou de qualquer pessoa no Brasil. O crime que seria correspondente ao revogado, de acordo com a Lei 14.197/21, seria o novo artigo 359 – L, CP, mas para além de ainda não estar em vigor (“vacatio legis”), também exige “violência ou grave ameaça”, bem como tentativa idônea de abolição do Estado Democrático de Direito ou impedimento ou restrição do exercício dos poderes constitucionais.

Não obstante a escolha da tipificação da suposta (misteriosa) conduta no artigo 18 da LSN não é criticável por si só, como ocorre com outros dispositivos mencionados do mesmo diploma. Isso porque o novel artigo 359 – L,CP constituirá “novatio legis in pejus” quando passar a vigorar, o que confere ultratividade ao artigo 18 da LSN e impede a retroatividade do novo dispositivo. Se houvesse uma descrição de conduta efetiva supostamente perpetrada por Allan ou outras pessoas, realmente a responsabilização se daria pelo antigo dispositivo. Entretanto, não existe conduta descrita supostamente perpetrada por Allan dos Santos, que tenha esse tipo de efeito, muito menos mediante violência ou grave ameaça. Pretender que a crítica, ainda que contundente, a qualquer poder seja crime, qualquer crime que seja, é indicação de falta de autoridade e sobra de autoritarismo.

As mesmas críticas cabem quanto à indicação dos artigos 22, I e IV e 23, I, II e IV da LSN, os quais, aliás, nem sequer encontram o mais mínimo vestígio de continuidade normativo típica na Lei 14.197/21, não sendo possível sequer defender a sua tipificação “in abstracto”. Tais crimes não passam realmente de cadáveres jurídicos adiados que nem sequer terão ultratividade em face de algum crime correspondente mais gravoso previsto na Lei 14.197/21. Significa dizer que mesmo que houvesse alguma descrição plausível de conduta tipificável nesses dispositivos revogados a prazo ou a termo, não seria legítimo seu uso para perseguir criminalmente alguém, devido à evidente irrazoabilidade dessa persecução, jamais suficiente para ofertar justa causa a uma futura ação penal. O emprego de dispositivos revogados em perspectiva somente pode ser encarado como uma forma de intimidação estatal desmesurada e injustificável.

Importante ressaltar que a Lei 14.197/21, em direção oposta à empregada na condução desses inquéritos ilegais, inclui no Código Penal o artigo 359 – T, como causa de exclusão de ilicitude, nos seguintes termos:

“Não constitui crime previsto neste Título a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais”.

Muito embora tal dispositivo somente entre em vigor em dezembro vindouro, nada mais é do que a positivação da razoabilidade democrática que impede a criminalização da crítica, conforme se tem visto ocorrer por toda a extensão desse decisório sob comento.

Ainda que aquilo que se interprete tratar-se de atentado contra o Estado Democrático seja a pretensão de alguns quanto à aplicação do disposto no artigo 142, CF, é preciso ter em mente que isso se refere a um pleito com sustento em dispositivo constitucional democraticamente promulgado em 1988. A aplicação do artigo 142, CF não significa ruptura da ordem democrática, mas instrumento constitucional de sua manutenção. Conforme esclarece Saad em sua obra:

O bloqueio temático que impede que o art. 142 seja discutido sem preconceitos e receba um tratamento acadêmico adequado se deve, (...), a uma enorme confusão conceitual. Assimila-se um instrumento como a intervenção do art. 142 com a introdução de um regime de exceção, o que não é verdade. O art. 142 disciplina a exceção, mas não institui um regime de exceção. Muito pelo contrário, (...), a função do art. 142 é recompor a ordem constitucional violada, e não instituir uma nova constituição. [43]

E prossegue com importante esclarecimento:

Descrever um mecanismo não é fazer apologia de seu uso, nem tampouco significa uma oposição à ordem constitucional, à democracia e ao Estado de Direito. Até porque, no caso brasileiro, a intervenção está prevista no texto constitucional, que foi aprovado pelos representantes do povo no momento da fundação do atual regime, destina-se à manutenção desse mesmo regime e é executada por um agente público democraticamente eleito. [44]

Há sim discordâncias, até no meio jurídico, quanto a essa questão do artigo 142, CF e sua aplicabilidade, mas isso não significa que a discussão e inclusive a defesa de sua aplicação constituam crime e não somente a expressão livre do debate político, jurídico e acadêmico. Crime de abuso de autoridade é tentar suprimir o debate mediante a criminalização e o uso indevido da persecução penal.

Reitera o Ministro Alexandre de Moraes suposta participação em organização criminosa, nos termos do artigo 2º. da Lei 12.850/13. Novamente há somente indicação de artigo de lei sem a devida descrição de condutas.

Acresce os artigos 1º., I e II e artigo 2º., I da Lei 8.137/90 (Crimes Contra a Ordem Tributária). Basicamente os dispositivos se referem a atos de sonegação fiscal ou evasão fiscal, mas novamente não há descrição pormenorizada de condutas. Nesses casos a importância é ainda maior, uma vez que há que ponderar não somente se os atos indicados evitam o pagamento de tributos, mas se constituem evasão (ilegal) ou mera elisão (meios legais de redução tributária). Além disso, para a possibilidade de persecução penal tributária há necessidade de esgotamento da via administrativa fiscal com a devida representação da fazenda pública. Não é que o ilícito tributário seja de ação penal pública condicionada à representação. Não, não é isso. [45] Mas, é claro e evidente que o ilícito penal tributário tem como pressuposto a ilicitude administrativa da conduta. Se não há ilícito tributário estrito, é óbvio que não pode haver crime contra a ordem tributária. De acordo com Monteiro, o Direito Penal é instrumento para a realização das leis tributárias, embora não perca sua autonomia científica. Ele incide sobre fatos “cujos contornos jurídicos são dados pelo Direito Tributário”, não sendo possível haver desvinculação dessa condição. [46] Esse é o sentido do artigo 83 da Lei 9.430/96 e da Súmula Vinculante 24 do STF sobre o tema, a qual tem o seguinte teor:

“Não se tipifica o crime material contra ordem tributária, previsto no art. 1º de I a IV, da Lei n 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”. [47]

Isso significa que o próprio STF considera o lançamento definitivo do tributo como elemento do crime tributário. Nas palavras de Monteiro:

“(...) a integração do tipo penal dos crimes tributários depende do pronunciamento dos agentes do fisco. Enquanto não se pronuncia a autoridade fazendária, não há que se falar em crime tributário”. [48]

E mais:

(...) os crimes contra a ordem tributária pressupõem não penas a subsunção de uma conduta ao modelo descritivo constante da lei penal, como também a inobservância de deveres previstos nas normas tributárias, de modo que não existirá injusto penal tributário que não configure reflexamente um injusto fiscal.

Pode-se dizer que nos delitos contra a ordem tributária está presente o fenômeno da dupla tipicidade, pressupondo a tipicidade penal a existência de uma tipicidade tributária. [49]

Trazendo à baila a perspectiva de Carrazza, é possível afirmar que a relação entre o Direito Penal Tributário e o Direito Tributário é a de um “direito de superposição”, [50] significando que a lei penal se refere à lei tributária. Incide não apenas sobre fatos e condutas, mas sobre fatos e condutas previamente determinados por outra esfera do Direito, em relação transdisciplinar, no caso específico, o Direito Tributário.

Seria um contrassenso que algo considerado lícito no campo administrativo – tributário fosse ilícito na seara penal, sabidamente subsidiária e de “ultima ratio”. Conforme lição do autor lusitano Figueiredo Dias:

“As causas de justificação não têm de possuir caráter especificamente penal, antes podem provir da totalidade da ordem jurídica e constarem, por conseguinte, de um qualquer ramo do direito. Esta verificação (…) é compreensível e, ao menos numa larga medida, indiscutível: se uma ação é considerada lícita (conforme ao ‘direito’) pelo direito civil, administrativo ou por qualquer outro, essa licitude – ou ausência de ilicitude – tem de impor-se a nível do direito penal, pelo menos no sentido de que ela não pode constituir um ilícito penal”. [51] E prossegue o autor, apresentando, em reforço, a formulação de Merkel: “sempre que uma conduta é, através de uma disposição do direito, imposta ou considerada como autorizada ou permitida, está excluída, sem mais a possibilidade de, ao mesmo tempo e com base num preceito penal, ser tida como antijurídica e punível” (grifos no original e interpolação nossa). [52]

Isso decorre da conhecida e acertada “Teoria da Unidade do Ordenamento Jurídico”. A ordem jurídica há que configurar-se como uma unidade sistemática, exigindo-se impecável sintonia entre as normas que a compõem, obedecendo, outrossim, ao “Princípio da Não – Contradição”, de acordo com o qual as proposições legais não podem se contradizer. [53] Não são admissíveis antinomias na ordem jurídica. Acaso surja uma antinomia, esta necessariamente será apenas aparente, devendo ser eliminada por uma atividade interpretativa. A cognição do Direito tem por objetivo a apreensão de seu objeto em sua totalidade de sentido, de forma a produzir uma descrição isenta de contradições internas. Parte-se do pressuposto de que conflitos aparentes de normas podem e devem invariavelmente e imperiosamente ser solvidos por meio da interpretação adequada. [54]

Seria mesmo inadequado submeter uma pessoa (contribuinte) a um calvário de persecução penal, antes do exame, no campo devido (tributário – administrativo), das razões que tenha ofertado para demonstrar a improcedência da autuação de que foi sujeito passivo por parte dos agentes da Fazenda Pública. [55] Muito pior ainda, a submissão de alguém à prisão provisória com base em algo tão insubsistente.

Note-se que a melhor doutrina aponta para a inexistência de legitimidade nem mesmo para o formal indiciamento de alguém por suposto crime tributário sem o esgotamento da instância administrativa. É inviável sequer fazer uma primeira imputação policial a uma pessoa de uma prática delituosa, já que para tanto é preciso, no mínimo, haver “prova da materialidade e indícios de autoria”. E “a materialidade dos crimes tributários é dada (...), pelo lançamento tributário definitivo”. Dessa forma, mesmo em havendo eventual autuação fiscal com elaboração de auto de infração, isso não constitui o bastante para “justificar o indiciamento do contribuinte suspeito de sonegação”. [56] Ora, se nem mesmo o indiciamento está justificado sem o esgotamento da via administrativa, quanto mais a decretação de uma prisão cautelar ou mesmo de qualquer cautelar constritiva.

Sustentar eventual autonomia absoluta entre as instâncias administrativo – tributária e penal – tributária violaria não somente a razoabilidade, conforme demonstrado, mas também a Separação dos Poderes:

O esquema constitucional de distribuição das funções estatais, seguindo a doutrina de Montesquieu, prevê a existência de três poderes independentes e harmônicos entre si. O Legislativo cria normas que inovam o ordenamento jurídico, o Executivo executa as leis criadas pelo Legislativo e o Judiciário julga os conflitos de interesses, aplicando a lei ao caso concreto. Nesse contexto, decorre implicitamente do texto constitucional que a atribuição para afirmar a ocorrência do fato gerador dos tributos em geral, determinar o quantum debeatur e individualizar o respectivo sujeito passivo, constituindo, assim, o crédito tributário, pertence exclusivamente aos agentes do fisco, integrantes do Poder Executivo. De fato, regulamentando o art. 146, III, b, da CF/88, dispõe o art. 142 do CTN, que compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo o caso, propor a aplicação da penalidade cabível.

Escapa, portanto, à atuação dos membros da magistratura avaliar, no caso concreto, se houve ou não evasão fiscal, para fins de aplicação das normas penais incriminadoras consubstanciadas nos arts. 1º. e 2º. da Lei 8.137/90. Não se sustenta, assim, a singela alegação de que a supressão tributária pode restar largamente comprovada na instância penal, uma vez que a instrução probatória no âmbito penal é mais ampla do que na esfera administrativa. A decisão quanto à existência de tributo pertence à esfera administrativa, com exclusividade. Entendimento diverso representa inadmissível invasão do Judiciário em seara exclusiva dos agentes públicos que integram a estrutura do Poder Executivo. [57]

Não se pode olvidar também que o pagamento do tributo, mesmo em havendo real evasão ou sonegação criminosa, leva à extinção da punibilidade desde que realizado “in integrum”, seja à vista, seja em adimplemento de parcelas (inteligência do artigo 83 e Parágrafos da Lei 9.430/96). Percebe-se claramente que o ilícito tributário, ainda que configurado, não é apto a sustentar uma prisão provisória, salvo quando satisfeitas todas as condições para sua punibilidade. Prender alguém por um ilícito em perspectiva é absurdo, prender alguém provisoriamente que ainda pode quitar um débito e obter a extinção da punibilidade penal, além de irrazoável, configuraria uma espécie de prisão por dívida inconstitucional, além de violar a proporcionalidade. Não se está dizendo, reitere-se, que a ação penal dependa de representação e que não possa haver investigação. Isso pode ocorrer livremente porque o crime é de ação penal pública incondicionada. No entanto, tal investigação estaria baseada ainda tão somente na autuação fiscal em debate na seara tributária, não seria possível, nesse estágio, afirmar materialidade delitiva suficiente a embasar cautelares penais, muito menos aquelas de natureza privativa de liberdade (vide artigo 312, CPP que exige “prova do crime e indício suficiente de autoria”). De maneira alguma, nessa quadra, se pode afirmar legitimamente a existência de “prova do crime”, requisito essencial para o decreto da preventiva, além de que a extinção da punibilidade pelo pagamento ainda é uma possibilidade, o que impediria qualquer sanção penal, tornando escandalosamente desproporcional a prisão provisória. Isso sem considerar o fato de que não há no r. decisório qualquer descrição de conduta imputável.

Numa perspectiva de dependência das instâncias tributária e penal – tributária em relação transdisciplinar

(...) sustenta-se que a ameaça de início da ação penal, sem o prévio exaurimento da via administrativa, constitui uma forma ilegítima de coação do contribuinte ao pagamento da exação, cuja exigibilidade não foi ainda afirmada pela administração fazendária. De fato, se o pagamento do tributo (...) extingue a punibilidade, (...) o contribuinte ficaria tentado a fazê-lo, para evitar o constrangimento de figurar como réu numa ação penal, ainda que isso implicasse em renúncia à impugnação administrativa da imposição tributária. Nessa situação apresentar-se-iam ao contribuinte as seguintes opções: insistir no recurso administrativo e se submeter à ação penal; ou desistir desta impugnação, pagar o valor do tributo e evitar a ação penal. Impõe-se, assim, um custo ao exercício do devido processo administrativo – fiscal, qual seja, a submissão do contribuinte ao processo – crime, o que não é nada razoável. [58]

Dessa forma, seria necessário, para o recurso aos crimes contra a ordem tributária por Alexandre de Moraes, que não somente se descrevesse a evasão ou sonegação específica, demonstrando não se tratar de mera elisão, mas também que se indicasse a finalização da discussão da questão na seara fazendária. No mínimo houve omissão e precipitação nessa capitulação criminal e, principalmente, na pretensão espúria de decreto de uma prisão provisória com sustento nessa tipificação.

Acrescenta ainda o crime de “Evasão de Divisas”, conforme artigo 22, Parágrafo Único da Lei 7.492/86 e novamente não há descrição de conduta alguma, o que se repete com a última imputação, qual seja, a de “Lavagem de Dinheiro”, nos termos do artigo 1º. da Lei 9.613/98. Neste último caso, sendo o crime de lavagem acessório ou parasitário, haveria necessidade não só de descrição pormenorizada dos processos de branqueamento de capitais (no mínimo suas fases básicas: “colocação ou “placement”; dissimulação ou “layering” e integração ou “integration” ou “recycling”), mas ainda, de crimes antecedentes dos quais teriam advindo tais valores. Nada disso é encontrável no decisório em análise.

No seguimento o Ministro passa a se utilizar da funesta técnica de “Fundamentação Per Relationem”, transcrevendo longamente manifestação do Ministério Público. Nessa situação o “julgador, ao invés de dar conta do seu dever de fundamentar, adota argumentos alheios, um recorta e cola”, o que tem, “inacreditavelmente”, contado com o beneplácito e conivência dos Tribunais Superiores, os quais, como se vê, inclusive adotam “essa prática vergonhosa”. [59]

Mas, será que ao menos a fundamentação do Ministério Público é razoável?

Um primeiro aspecto de alta relevância é o fato de que a manifestação ministerial em que se baseia o magistrado mediante pura transcrição foi exarada na época no bojo do Inquérito STF 4828, o qual, conforme já exposto, foi arquivado pela própria PGR. Ora, se naquele inquérito foram requeridas cautelares para apuração de eventuais ilícitos perpetrados por Allan dos Santos e outros e nada foi apurado de consistente, de modo que o feito foi arquivado, como é possível pretender o Ministro Alexandre de Moraes sustentar seu “decisum” numa fundamentação “per relacionem” com tal manifestação já superada. Isso é, como se diz popularmente, “requentar” uma argumentação. Nada mais que um ato de reciclagem de fundamentos já superados e rechaçados pelo próprio Ministério Público!

Somente esse fato já isentaria este autor de sequer fazer qualquer análise crítica do conteúdo da citada manifestação ministerial colada e copiada pelo magistrado. Mas, por amor ao debate e à busca da verdade, vejamos:

Inicia-se por platitudes descritivas da capacidade das redes sociais (a exemplo de vários outros meios de comunicação de massa) de arrebanhar seguidores, ouvintes, leitores, fãs etc. Também há comentários acerca da chamada “monetização” de conteúdos, que propicia a certos influenciadores obter ganhos financeiros com atividades exercidas na rede. O grande problema prossegue: qual é o crime existente no fato de que ao atuar em redes sociais se é capaz de cativar um público? E mais, de ganhar financeiramente com essa atividade, a qual, modernamente, se tornou uma fonte de renda e trabalho? Ou somente alguns podem ter esses “privilégios” a critério de algum órgão ou indivíduo censor, como já se afirmou, de acordo com as impressões subjetivas de um ou mais “editores” do Brasil?

E, afora isso, somente se faz menção à defesa de Allan dos Santos, assim como de muitas pessoas, quanto à “intervenção”, o que significa dizer aplicação legal e constitucional do artigo 142, CF, conforme já exposto, inclusive com os esclarecimentos irrespondíveis dos constitucionalistas Amauri Saad e Ives Gandra Martins. Parece que ao final se pretende incriminar a exigência legítima de poder se manifestar a respeito de uma questão política e jurídica, bem como de criticar a repressão totalitária e o silenciamento do discurso a respeito de um tema que, ao fim e ao cabo, é eminentemente técnico – jurídico, embora tenha repercussões políticas inegáveis. Na verdade, quase tudo tem repercussões políticas no agir humano e não se pode criminalizar a defesa de posições políticas, ainda que não se concorde com elas, muito menos a discussão popular e acadêmica de uma questão jurídico – constitucional. Ainda que houvesse uma decisão do STF considerando que o artigo 142, CF seria uma “norma constitucional inconstitucional” (o que, em tese, é possível segundo, por exemplo, Otto Bachof) [60], nada impediria a crítica, ainda que ácida, quanto à posição do referido Tribunal Superior e a continuidade do debate popular, acadêmico e político. A imposição de mordaça seria inviável, a não ser que se admita exatamente o que se alega pretender impedir, ou seja, a derrubada sem peias do “Estado Democrático de Direito” exatamente pela instituição que o deveria defender sob o prisma constitucional. É que, na verdade, não há propriamente “instituições democráticas”, mas instituições que são consideradas importantes numa democracia, desde que seus componentes humanos atuem dentro das regras do jogo democrático. Uma suposta instituição democrática pode perfeitamente se desvirtuar e tomar forma totalitária ou, no mínimo, ditatorial (executivo, legislativo ou judiciário, forças armadas, Ministério Público, Polícia, Cátedra Universitária etc.). Não seria necessário dizer face à obviedade, mas é fato constatável que todas essas instituições se fazem presentes nos atuais regimes totalitários (China, Coreia do Norte, Cuba, Venezuela), assim como sempre foi ao longo da história. Aliás, historicamente, é possível afirmar com certeza que essas instituições, sob uma ou outra forma, precedem em séculos até mesmo a ideia de Democracia. Líderes com funções executivas, legisladores, magistrados, exércitos, indivíduos ou grupos responsáveis pela educação e pela manutenção da ordem sempre existiram nas mais diversas sociedades muito antes que a ideia democrática sequer fosse cogitada. [61] Portanto, essas não são “instituições democráticas”, o que importa é o seu funcionamento de acordo com as regras democráticas.

Ao fim e ao cabo o conteúdo da manifestação ministerial referida como fundamento “per relacionem” volta à mesma cantilena de comentários acerca de fatos atípicos com ares imponentes de quem está descrevendo crimes bárbaros. Ou seja, do nada, nada se originou.

Finalmente o magistrado faz referência às suas próprias razões, mesmo assim não originalmente, mas repetindo alegações que fizera quando do arquivamento do Inquérito 4828 e da manobra de abertura deste Inquérito 4874. Retorna-se à reciclagem argumentativa ou à marmita requentada de fundamentos. Esses giros e insistência em pontos antecedentes dão a clara evidência de que se lida com um círculo vicioso.

O conteúdo não diverge em seu vazio absoluto de descrição de condutas que possam ser consideradas penalmente típicas. São as mesmas reiteradas alusões à exploração da atividade de comunicação e jornalismo, de monetização, de busca de lucro com a atividade laboral, de críticas às instituições e agentes públicos, de sugestões de intervenção com base em norma constitucional vigente, de atuação política (que ao que se saiba é livre no Brasil), de proposta de alteração ou ajuste otimizado da tripartição de poderes, de busca (confessadamente não comprovada) de recursos públicos para a atividade jornalística (como se isso fosse crime e não ocorresse com praticamente todos os órgãos de imprensa), de pretensa criminalização de pagamentos relativos à administração do canal Terça Livre e do intento de internacionalizar o citado canal (Desde quando administrar, fazer pagamentos e ter ambição de internacionalizar um canal é crime? Se fosse, grave omissão estaria ocorrendo quanto à vinda da CNN para o Brasil, pois, ao que se saiba, não há qualquer investigação a respeito disso. E é claro que não deve nem pode haver, pois não há qualquer crime na internacionalização de um canal de comunicação, seja ele qual for, aliás de nenhuma empresa.).

E o círculo prossegue, voltando às manifestações da Polícia Federal acerca das mesmas imputações genéricas que não descrevem nada em termos de conteúdo. Uma novidade é criminalizar a crença na existência de fraude nas eleições americanas de 2020, bem como o fato de não ter confiança no sistema eleitoral brasileiro! Onde estariam tipificados tais crimes? Que se saiba nem aqui nem na China, nem nos EUA! Afinal confiança é algo que se conquista, não algo que se impõe a ferro e fogo ou com ameaças e repressão.

Finalmente Alexandre de Moraes, com sustento em toda essa coleção de “flactus vocis” jurídicos, considera que a única medida cabível para conter a suposta sanha criminosa de Allan dos Santos seria a decretação de sua prisão preventiva. O primeiro motivo seria a manutenção da ordem pública, já que o investigado estaria praticando continuamente os ilícitos jamais descritos no decisório, pelo magistrado, pelo Ministério Público e pela Polícia Federal. Cita-se também a necessidade por conveniência da instrução criminal devido a estar o investigado no estrangeiro, o que, como já demonstrado, é insustentável. Outro aspecto é o apontamento da motivação de assegurar a aplicação da lei penal, usando jurisprudência que trata de pessoa foragida, sendo fato que há uma diferença gritante para qualquer um não afetado de cegueira deliberada entre um foragido que procura homiziar-se, colocar-se em local incerto, de uma pessoa que mora em outro país e tem endereço fixo, atuando diariamente de forma pública e com localização até mesmo possível por rastreamento telemático.

Sob a alegação de recurso ao polêmico “poder geral de cautela no processo penal”, Alexandre de Moraes impõe bloqueios financeiros a Allan dos Santos e sua empresa, sob o argumento de que tal medida seria necessária para impedir o seguimento de sua atuação supostamente criminosa. Ora, se Allan é o autor de todos os atos descritos e estará preso, como é possível que continuasse com suas transmissões? Na verdade a única consequência prática desse bloqueio financeiro é a inviabilização da vida econômica do sujeito passivo da medida e, juntamente com ele, de sua empresa, e pior, de seus funcionários. Nesse passo a cautelar atinge até mesmo terceiros inocentes, o que não se coaduna com o “Princípio da Intranscendência” que se refere à pena, quanto mais a cautelares. Essa medida extrapola tudo que se possa pensar que seja razoável. Afinal, desde o Direito Romano já se sabe da iniquidade que consiste em punir terceiros absolutamente inocentes por ato de outrem: “Peccata suos teneant auctores” – “Os crimes só atingem aqueles que os cometeram”. [62]

Todos os canais de comunicação de Allan dos Santos também foram bloqueados em ato que, sem a menor dúvida, configura censura prévia inconstitucional. Ademais, se foi decretada sua prisão e bloqueados seus canais, qual o intento do seu bloqueio financeiro a não ser a redução à penúria do comunicador (pena ou cautelar inexistente)? Percebe-se claramente que este último bloqueio foi determinado sob o falso pretexto de ser necessário para impedir sua atuação como jornalista e comunicador, uma vez que outras medidas incapacitantes já foram determinadas e seriam mais do que suficientes. Como já visto, também não há descrição minimamente segura, ainda que indiciária, de crimes como sonegação fiscal, evasão de divisas ou lavagem de dinheiro, mencionados na decisão, mas sem elementos concretos convincentes, seja de fato ou de direito. No bojo da própria decisão o Ministro repete várias vezes que a respeito desses temas são necessárias mais apurações! Não é dizer que para a decretação de uma cautelar se exija um juízo exauriente da questão, mas ao menos materialidade e indícios suficientes de autoria são imprescindíveis (juízo de probabilidade).

Na verdade há somente alegação de recebimento de monetização com remessa ao exterior em nome de terceiros. Mas também, ao que se depreende, tais operações foram todas registradas e, estando o envolvido no exterior, nada mais natural que os valores fossem remetidos. Em dado momento menciona-se uma pessoa como “sócio oculto”, o qual receberia tais valores. A utilização da expressão jurídica “sócio oculto” sem maiores esclarecimentos e como foi posta no texto passa uma impressão (falsa) de que se trataria de alguma ilegalidade, algo obscuro ou clandestino, quando, na verdade, o “sócio oculto” é um instituto comum nas sociedades empresariais, algo totalmente legal e regulado pelo Direito Civil/Empresarial Brasileiro. Aliás, o chamado “sócio oculto” é mais comumente denominado de “sócio participante”, o que certamente elimina, para o leigo, a má impressão da primeira expressão. O “sócio oculto ou participante” surge na chamada “Sociedade em Conta de Participação”, a qual é legalmente regulada nos artigos 991 a 996 do Código Civil. Ela tem duas espécies de sócios: “Sócio Ostensivo”, que é aquele que pratica em seu nome próprio a atividade empresarial e representa a sociedade perante terceiros; e o “Sócio Participante ou Oculto”, o qual não se apresenta a terceiros, nem representa a sociedade em seus negócios ou pratica diretamente a atividade final ou relações de negócios. Trata-se, este último, na verdade, de alguém que investe na empresa. [63] Como bem esclarece Tomazzete:

A Sociedade em Conta de Participação não aparece para o público, quem aparece é o sócio ostensivo, daí dizer-se que ela é uma sociedade oculta, o que não significa que tenha fins fraudulentos, mas que não é ou não precisa ser conhecida pelo público (grifo nosso). [64]

A utilização da expressão “sócio oculto” da forma como se deu na decisão enfocada foi sofrível sob o ponto de vista de fundamentação, especialmente no aspecto “extraprocessual” que atine ao comum do povo, o qual não está obrigado a dominar o vocabulário técnico – jurídico e pode facilmente se equivocar ou iludir com o sentido real de uma palavra ou expressão. O cuidado com esse aspecto extraprocessual deve ser enorme, principalmente quando se sabe que tais decisões que envolvem questões políticas serão exploradas e divulgadas pela imprensa, também formada por pessoas em geral despreparadas sob o ponto de vista de uma linguagem jurídica mais apurada. Explica-se:

Sérgio Nojiri [65] põe em destaque o duplo aspecto da fundamentação das decisões judiciais, ou seja, pelo ângulo endoprocessual e pelo ângulo extraprocessual. No primeiro caso, surgiria a fundamentação como garantia da ampla defesa e do duplo grau de jurisdição, propiciando aos jurisdicionados o conhecimento das razões de decidir, podendo contrariá-las em grau de recurso, quando, por seu turno, os tribunais superiores poderiam também ter acesso aos motivos do juiz de primeiro grau, analisando-os criticamente para formação de sua convicção quanto à manutenção de eventual decisão recorrida ou de sua reforma total ou parcial. Já pelo aspecto extraprocessual ter-se-ia, a exemplo da conhecida “teoria da sociabilidade das decisões” apregoada por Malatesta, um reflexo do Estado Democrático de Direito a impedir o exercício arbitrário do poder, mediante o conhecimento, pela fundamentação e através da publicidade, dos motivos que levaram o magistrado a decidir no caso concreto. Nas palavras do autor, "a fundamentação das decisões judiciais, inserida nesse contexto, revela que o poder judiciário, ao motivar seus provimentos, age como um legítimo órgão de manifestação de um Estado Democrático de Direito. Ao proceder à subsunção do fato à norma, possibilita aos jurisdicionados a chance de conhecerem as razões que fundamentaram a decisão judicial." [66] E aqui se tratam das pessoas comuns, não de juízes, advogados, promotores etc., de modo a exigir-se absoluta transparência e clareza na redação, o que não ocorre quando se usa uma expressão que pode ter um sentido aparentemente negativo no vocabulário comum e outro totalmente lícito na terminologia jurídica.

 Outro fato que espanta na decisão é que o dinheiro que estaria sendo supostamente lavado adviria de “monetizações” em redes sociais, o que não é crime antecedente de forma alguma. É algo que é corrente nas redes sociais que remuneram as pessoas dessa forma devido à publicidade que explora em suas “lives”, aulas, vídeos, postagens etc. É simplesmente impossível “lavar dinheiro” oriundo de “monetização” de redes sociais porque não há crime nessa monetização! Seria como lavar dinheiro do próprio salário ou de honorários ou pagamentos recebidos por prestação de serviços! Em suma, lavar o que já é limpo, tal como um hipocondríaco que lava as mãos a cada dois minutos. A evasão de divisas também implicaria numa remessa não comunicada e, ao menos pelo que consta da decisão, a própria ciência sobre as remessas se deu por pesquisa em órgãos públicos onde estavam registradas!

Finalmente é interessante salientar que há alusão a propagandas do Governo Federal que seriam veiculadas esporadicamente nas redes sociais de Allan dos Santos e outros envolvidos, gerando monetização. Com isso ocorre uma insinuação quanto a algum patrocínio estatal das atividades em disquisição, dando a entender que esse suposto “patrocínio” seria ilícito. Em primeiro plano é importante destacar que propagandas do Governo Federal, Estadual ou Municipal são veiculadas pelos mais diversos órgãos de imprensa e comunicação sem que isso seja considerado crime jamais. Mas, o pior é que, ao menos aparentemente, nem a Polícia Federal, nem o Ministério Público e nem mesmo o Ministro que exara a decisão têm o menor conhecimento sobre o mecanismo de publicidade nas redes sociais, e nesse passo é preciso reconhecer que da decisão consta que há necessidade de maiores apurações (e realmente há ingente necessidade disso). Na verdade já haveria necessidade de uma verificação mínima até para fazer essa espécie de insinuação com mais responsabilidade e propriedade, o que, aliás, se constataria ser impossível. É preciso esclarecer que as propagandas veiculadas em redes sociais são firmadas entre a empresa ou órgão que quer a publicidade e a rede em si, não com os usuários. A veiculação das propagandas é feita por um logaritmo de forma randômica, ou melhor, mediante análises de acesso, estatísticas de resultado publicitário e podem surgir em qualquer das postagens de usuários, não sendo algo controlável por este último, pelo Governo, por empresas e nem mesmo, a rigor, diretamente pelas redes (já que se trata de uma escolha determinada por um logaritmo sem subjetividade). A não ser que se pretenda incluir na suposta “organização criminosa” o logaritmo do Google, a insinuação de patrocínio supostamente ilícito não passa jamais disso, uma insinuação provocada, espera-se, pela mais profunda ignorância dos mecanismos envolvidos no processo publicitário das redes. Espera-se que essas insinuações tenham decorrido de ignorância e precipitação, pois que não se pretende sequer cogitar de outra hipótese que possa envolver plena ciência da insustentabilidade do que foi insinuado, fato este que constituiria uma indecorosa conduta, até sob o prisma da honestidade intelectual, de afetar não saber aquilo que se está “careca” de saber. E isso é de extremada gravidade porque decorreria de pessoas que tiveram uma formação privilegiada, mas acabariam produzindo com a educação recebida, nada mais do que “uma capacidade aumentada para o mal”. Não por outro motivo, nos lembra Scalia que diziam os romanos: “corruptio optimi pessima est – a corrupção do melhor é a pior”. [67] Contudo, mesmo considerando a simples ignorância sobre o tema como motor dessa insinuação, seria de se esperar mais de pessoas que ocupam cargos e funções de grande responsabilidade e dotadas de certa formação educacional e cultural. Até mesmo sem uma maior pesquisa, seria de desconfiar que o mecanismo de publicidade nas redes tem suas peculiaridades e de que seria precoce, temerário e leviano fazer afirmações sem o devido sustento.

Infelizmente é fato que o homem pode se recusar a reconhecer a evidência, pode fechar os olhos e simplesmente abandonar a intelegibilidade de que é dotado. Afinal “o exercício da inteligência, no homem, é livre e não necessário, já que, se fosse necessário, o homem inteligiria tudo necessariamente, coisa que se vê, por experiência, que não acontece”. [68]

Com base em todo esse conjunto de equívocos e vazio fundamental, é decretada pelo Ministro Alexandre de Moraes a Prisão Preventiva do jornalista Allan Lopes dos Santos, bem como outras medidas cautelares constantes da Petição STF 9.919/DF. [69] Essas medidas são ilegais, tendo em vista o fato de que em não havendo demonstração mínima do Direito Material respectivo, que serviria de justa causa para futura ação penal, impossível decretar cautelares. A ação penal respectiva, que precisaria ser embasada em eventuais crimes cometidos seria o “processo principal” no qual se sustentaria acessoriamente a cautelaridade da prisão e demais medidas. Sem o principal devidamente demonstrado o acessório não se pode sustentar (“acessorium sequitur principale”).

As cautelares são acessórias de um processo principal, não podendo subsistir por si mesmas. Destaque-se que se em sede de Processo Civil é possível falar em “Cautelares Satisfativas” (que se exaurem em si mesmas), embora tal ponto seja mesmo nessa seara bastante discutido [70], não há se cogitar de satisfatividade cautelar no Processo Penal. Nesta sede a acessoriedade se agiganta, impedindo que a providência cautelar se transforme em antecipação de pena, muito menos uma pena sustentada em ilícitos sequer minimamente descritos. [71]

Tendo em vista o fato de que o agora “procurado” se acha em território norte – americano, determina o magistrado que o Ministério da Justiça proceda aos trâmites de sua extradição.

É bom esclarecer que não se trata da chamada “extradição passiva”, na qual “o Estado estrangeiro solicita ao Estado Brasileiro a entrega de pessoa que se encontre no território nacional”. Nessa espécie de extradição há necessidade de “autorização do STF” (artigo 102, I, “g”, CF), que se cinge tão somente à “análise da legalidade e da procedência do pedido” de acordo com o disposto na Lei 13.445/17, regulamentada pelo Decreto 9.199/17 e RISTF, artigos 207 – 214. Acaso tal pedido seja indeferido não se constitui título executivo hábil à extradição, de modo que o Presidente da República está impedido de efetivá-la. Porém, se for deferida pelo STF a extradição a questão assume foros políticos e cabe ao Presidente da República discricionariamente decidir se efetua ou não a entrega da pessoa ao Estado estrangeiro (Pleno STF, Ext. 1.114/ Chile; Ext. 1.085/ Itália, este segundo “decisum” refere ao famigerado caso Battisti). [72]

No caso Allan dos Santos, se trata de “extradição ativa”, na qual “é o Estado Brasileiro que requer, a algum Estado estrangeiro, a entrega de pessoa sobre quem recaia condenação criminal definitiva ou para fins de instrução de processo penal em curso”. [73] Mais especificamente, a extradição ativa enfocada se destina à instrução de processo penal em curso, pois que não há condenação definitiva contra Allan. Denomina-se doutrinariamente essa situação de “extradição instrutória”, referindo-se aos casos em que a extradição é requerida “antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, podendo ocorrer tanto “no curso do processo penal”, quanto “na fase investigatória” (caso específico em estudo) (inteligência do artigo 83, II, da Lei 13.445/17 – Lei de Migração). [74] Observe-se que na extradição ativa não há necessidade de autorização do STF, mas basta a deliberação de um órgão judiciário, o qual apresenta o pedido de extradição ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (artigo 88, “caput” da Lei 13.445/17). [75] Também não há qualquer atuação do Presidente da República ou avaliação política discricionária. No caso de Allan dos Santos, apenas por uma coincidência o pedido foi realizado por um Ministro do STF. O procedimento é baseado tão somente nas normas legais. Dessa forma:

Uma vez apresentado o pedido de extradição ativa pelo órgão do Poder Judiciário responsável pelo processo penal, competirá ao Ministério da Justiça e Segurança Pública examinar a presença dos pressupostos formais e admissibilidade exigidos em lei ou em tratado. Caso atendidos, a autoridade executiva providenciará o encaminhamento imediato do pedido de prisão ou de extradição ao Estado requerido, por via diplomática ou por meio das autoridades centrais respectivas (grifo nosso). [76]

Tendo em vista os inúmeros vícios ocorridos tanto no pedido de prisão quanto na decisão de seu deferimento, conforme exaustivamente enumerados neste texto, há manifestações pretendendo que o Ministro da Justiça indefira o encaminhamento da extradição. Acontece que não se deve confundir a extradição ativa com a passiva. É somente nesta segunda que ao poder executivo, na pessoa do Presidente da República, é conferida discricionariedade após a decisão do STF. No caso da extradição ativa, quando a lei determina que o Ministério da Justiça examine a presença ou não dos “pressupostos formais” e de “admissibilidade”, isso se refere tão somente ao exame da documentação necessária e das formalidades legais e convencionais. Não é dado ao Ministro da Justiça adentrar na análise de mérito da decisão judicial. Fala-se de uma necessária desobediência a uma ordem judicial ilegal a fim de barrar ou arrefecer certo ativismo judicial descontrolado. Entretanto, é preciso ter em mente que se um ativismo judicial exacerbado é deletério, também o será um ativismo generalizado em vários órgãos estatais. A pretensão de fazer contraponto a um ativismo judicial incontido pode acabar criando novos ativismos (v.g. policial, administrativo, burocrático etc.), pulverizando e ampliando esse maléfico fenômeno. Observe-se que para que uma autoridade administrativa, por exemplo, se negue a cumprir uma ordem judicial, sob a alegação de sua ilegalidade, necessariamente terá de fazer uma análise subjetiva dessa suposta ilegalidade e então, de subjetivismo em subjetivismo chegaríamos a um caos completo em termos de segurança jurídica. Não que já não soframos desse mal com o ativismo judicial (e algumas vezes policial e ministerial), mas certamente a solução não é combater ativismo com mais ativismo e sim criar mecanismos e uma cultura de autocontenção das autoridades em geral, mediante o respeito à lei e à Constituição. É bem verdade que essa proposta implica em muitas dificuldades e passa até mesmo pela formação dos profissionais da área jurídica nos bancos universitários e nas escolas de formação (v.g. Escola da Magistratura, Escola do Ministério Público, Academias de Polícia etc.), não obstante é a única saída racional e efetiva para o problema em debate.

É equivocada a referência à possibilidade de não cumprimento de ordens “manifestamente ilegais”. Essa terminologia é retirada da redação do artigo 22, CP que trata da chamada “Obediência Hierárquica” e, só aparentemente poderia ser aplicável a casos como o em estudo, muito embora não se possa falar com propriedade em “hierarquia” entre magistrados e membros do poder executivo. Haveria, porém, uma ordem judicial a ser cumprida. Poderia a autoridade administrativa não dar cumprimento, avaliando sua ilegalidade? Sim. Mas para isso seria necessário que a ordem fosse “manifestamente ilegal”. E isso quer dizer que teria de ser uma determinação “flagrantemente, visivelmente ilegal”. [77] Ou seja, “a ordem pode ser ilegal, mas não manifestamente ilegal, não flagrantemente ilegal”. [78] Por exemplo, a ordem de torturar ou matar alguém. Perceba-se que neste texto tivemos de expor várias razões de fato e de direito, formais e materiais e de certa complexidade para chegar à conclusão de que a prisão não se sustenta. Isso significa que a ordem expedida, embora eivada certamente de vários vícios, não é “manifestamente ilegal”, ao reverso, ela se traveste ou disfarça de legalidade com pretensos fundamentos cuja análise requer detido exame. Não se trata, nem de longe daquilo a que se refere a situação prevista no artigo 22, CP e que permitiria a desobediência de ordem “manifestamente ilegal”. Não se trata de uma constatação imediata, intuitiva ou evidente, mas de uma análise que seria feita por um órgão de revisão do decisório enfocado. Não é possível permitir que a polícia, autoridades administrativas ou burocráticas acabem se convertendo em órgãos de revisão de decisões judiciais similares a instâncias recursais, apenas com a diferença de que agiriam de ofício. Essa confusão que leva a uma ampliação do chamado ativismo é demasiadamente perigosa, pois se hoje tratamos de um abuso judicial, nada impede que outros abusos em detrimento de ordens judiciais legítimas sejam cometidos por outras autoridades. Estamos diante de um impasse que exige muito equilíbrio e prudência, tal como já alertava Francisco Campos, com fulcro no escólio de De Marsico, ao apontar que temos “de um lado, um excesso de poder na indagação da legalidade da ordem”, o que “quebraria o princípio de autoridade, mas, de outro, um excesso do dever de obediência quebraria o princípio do Direito”. [79]

No caso concreto, como tem ocorrido em muitos outros similares, recursos ou ações de impugnação interna têm sido inúteis, pois que julgadas pelo próprio órgão coator. O que resta é o apelo a Tribunais Internacionais de Direitos Humanos, a fim de que haja alguma espécie de intervenção, capaz de impor no plano imediato a necessária autocontenção e respeito à lei, às Convenções Internacionais e à Constituição Federal.

Nunes, em matéria de jornal, aponta a possibilidade de negativa da extradição de Allan dos Santos pelos EUA, tendo em vista a consideração de que as condutas imputadas são basicamente o que se chamaria de “crime de opinião” perpetrado na atividade jornalística, [80] embora se colacionem, sem maior consistência, tipos penais os mais variados, conforme se demonstrou ao longo deste texto.

Parece, porém, inevitável que se esteja a depender de alguma instância externa para a solução de casos abusivos como o que é objeto do presente trabalho.

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Caso Allan dos Santos: narrativas x arbítrios.: Constitucionalidade e legalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6712, 16 nov. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/94903. Acesso em: 7 out. 2024.

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